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A descrição do gesto

Uma conversa com o artista visual, designer gráfico e professor Gabriel Gimmler Netto

Gabriel Gimmler Netto, Superfície Tempo, videoperformance, 2010-2011. Filmado por Carolina Veiga, no Instituto Sacatar, Itaparica-BA. 

Foi em uma tarde bastante abafada de março que Gabriel nos recebeu no Largo das Artes, um centro independente de arte contemporânea com ateliês coletivos, residências e exposições localizado em um casarão do século XIX, no centro histórico do Rio de Janeiro. Ali Gabriel manteve seu ateliê até dezembro do ano passado, e é onde ainda guarda algumas de suas obras de maiores dimensões. Bacharel em Artes Plásticas e mestre em Design e Tecnologia, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vive no Rio de Janeiro desde 2010, onde trabalha como professor universitário (SENAI CETIQT), designer gráfico e artista visual. Participou de exposições em diversos estados brasileiros e foi um dos artistas contemplados na quarta edição do programa Rumos Artes Visuais, do Instituto Itaú Cultural. Sua pesquisa, tanto acadêmica quanto artística, busca colocar em questão os limites do desenho, a relação do desenho com o design e, por meio de apropriações e instalações, encontrar espaços de experimentação para o que chama de desenho gestual.  Seu trabalho é bastante marcado por uma relação performática com os materiais, “unindo em sua poética a performance e a instalação como procedimentos do próprio desenho.” [1] Neste encontro, em contato com algumas de suas obras e com os materiais que dispunha em arquivo num computador pessoal, como videoinstalações e fotografias, conversamos sobre a sua formação, os trajetos intrínsecos a alguns de seus trabalhos e a força que participa, quase sempre, de seu processo criativo.

 

Fotos: Rodrigo Carrijo

 

Natália Quinderé: Quando você veio pra cá, Gabriel?

 

Gabriel Gimmler Netto: Em 2010. Em 2009 defendi meu mestrado, e, em seguida, fui selecionado pro programa Rumos Artes Visuais, do Itaú Cultural, e aí comecei a viajar. Fui pra Rio Branco, Salvador, São Paulo e pra cá. E, quando eu vim pro Rio, já estava a fim de dar um tempo, de ficar fora de Porto Alegre, e calhou de conhecer a Carolina, que é gaúcha, mas mora aqui há muitos anos e com quem me casei.

 

Gabriel nos mostra algumas das obras que estão pelo espaço.

 

G: Então estou com coisas espalhadas por vários cantos, entende? Vai demorar um tempo pra conseguir reunir tudo em um lugar só.

 

N: Ah, foi esse trabalho [Desenho Instalado 2, 2010] que você veio montar aqui no Paço Imperial, em 2010?

 

G: É, porque ele dependia de uma montagem minha. Quando nós alugamos o espaço do Ateliê Subterrânea [2], eu já estava fazendo esses desenhos que tem a ver com o movimento do corpo. E lá havia uma parede muito grande, tinha uns 7 metros, e logo que entrei eu pensei: vou fazer um desenho nessa parede! Porque eu tenho uma coisa de às vezes recuar e ter que trabalhar no quarto de empregada e o trabalho ficar menor, e, outras vezes, quando tenho um espaço maior, o trabalho se expande, de acordo com o tamanho da parede. Porque é um movimento, e um movimento pode se expandir num salto, numa corrida. No caso desse, pensei em fazer nessa parede e fazer caminhando. Caminhando ou correndo. A primeira montagem que fiz era completamente diferente, um desses papéis era tipo uma escultura, tinha diagonais…Quando essa obra foi selecionada para o Rumos, pediram para eu fazer vários e eu fiz. Que era pra poder “itinerar”. Então cada montagem eu escolhia alguns, e pegava fita adesiva, durex, durex largo, colava, decalcava…Porque é papel vegetal, é esse papel aqui.

 

 

 

 

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Gabriel Gimmler Netto, Desenho Instalado 2, grafite sobre papel vegetal e decalques em fita adesiva, dimensões variadas. Montagem Paço Imperial, Rio de Janeiro, 2010. Foto: Carolna Veiga.

Ele nos mostra um papel que está sobre a mesa.

 

G: Quando eu colo o durex aqui e retiro, ele traz só o grafite, entende? Só o risco. Então eu decalcava e reposicionava o desenho lá na parede. Por isso tratava-se de uma montagem que eu precisava fazer. Era uma instalação que eu devia fazer no lugar. A maior parte desse durex se perde depois. 

 

N:  Esse trabalho parece ir um pouco nesse sentido de o desenho ganhar também o espaço, não é? Ele tem uma coisa grande, quase cenográfica. Como foi que você começou a desenhar nessas escalas, em geral pouco comuns ao desenho?

 

G: É, cenográfico… Eu já não saberia dizer o que nele é cenográfico. Ele tem  realmente uma coisa do espaço. É muito simples a maneira como começou: eu estava na faculdade e tinha uma professora, a Umbelina, que me deu aula de desenho. A gente tinha uma disciplina, lá no final da faculdade, chamada Desenho Criativo, para quem se formou na ênfase de Desenho. Na época havia ênfases em Desenho, Pintura, Escultura etc. Então a Umbelina conseguiu um ateliê pra gente que não era nem no prédio do Instituto de Artes, era no prédio da reitoria… E quem cursou a disciplina com ela recebia uma cópia da chave dessa sala. Ela nos entregava a chave e dizia: olha, dia tal a gente se encontra e conversa sobre o trabalho de vocês.  Era um ponto no qual a gente já tinha autonomia, já estávamos descobrindo muitas questões etc. E essa liberdade de ter um ateliê e poder ir a qualquer hora, para mim e para alguns outros que fizeram aquela disciplina comigo, foi o estopim para uma transformação. Foi uma catarse, mesmo. E, ao mesmo tempo, eu tinha ganho de um amigo… Eu tinha um amigo que morava com um arquiteto, e, quando esse arquiteto saiu, ficaram uns rolos de papel vegetal na casa desse meu amigo e ele me disse assim: ah, você não quer esses rolos de papel vegetal? E eu disse: ah, eu… beleza!  

 

Rodrigo Carrijo: Então foi uma coisa que apareceu meio que ao acaso, o material!

 

G: É, eu já desenhava muito no papel manteiga, ou em algum papel vegetal menor, e eu gostava muito do contato do grafite com esse tipo de papel. Porque ele tem um contato suave, macio. Só que, de repente, eu tinha um rolo de papel vegetal! Que eu podia abrir, grandão, que podia definir o meu formato. E era, na época – acho que hoje isso não tem mais –, papel vegetal com uma gramatura muito pesada. Ele era espesso, então ele amassava e não rompia. E isso, do grafite na superfície, foi natural acabar no desenho. Eu já estava num processo em que a marca era mais importante do que a temática. Já tinha começado isso. Acho que onde eu chegava mais perto da abstração era desenhando plantas. Então o movimento da planta ia pra uma coisa meio abstrata. E quando ganhei esse papel, meu trabalho abstraiu total. Antes, meus trabalhos não eram tão abstratos. Eram mais figurativos. Eu desenhava umas plantas e conseguia chegar em algumas coisas, a mancha…No papel manteiga, fazia umas manchas por trás…Conseguia alguma coisa assim. Mas quando surgiu esse papel vegetal grande, pesado, aí abstraiu, porque comecei a me jogar com muita força. Os primeiros desenhos com ele eram muito viscerais, muito fortes. Deixa eu ver se tenho alguma coisa aqui.

 

Gabriel Gimmler Netto, Duplo. Aquarela, pastel seco e grafite sobre papel, 42cm x 21cm, 2002.

 

Gabriel Gimmler Netto, Síndrome de Basquiat, 

aquarela e grafite sobre papel, 15cm x 21cm, 2002.

 

 

Gabriel Gimmler Netto, Inverno, pastel seco sobre papel, 42cm x 42cm, 2001.

 

Gabriel começa a procurar alguma imagem em seu computador. Ele nos mostra alguns de seus desenhos anteriores à experiência com o papel vegetal grande.

 

G: Eles já iam pra uma abstração, sabe.

 

R: Aí você também trabalhava com cores…

 

G: Sim. Aqui é aquarela. Aqui é giz pastel. Havia a figuração ainda, mas isso aqui já estava me interessando mais do que qualquer coisa. Você vê que há uma tentativa de representar o corpo, mas a mancha já aparece…Aqui já tinha uma mancha que ora define o fundo da figura, ora é apenas a mancha. Então essas coisas já estavam muito intensas pra mim. E quando eu ganhei esses papéis, eles viraram isso, eles amassavam etc. Então entrou uma garatuja, entrou essa intensidade, eu conseguia amassar.

 

R: Quanto aos amassos, eles vieram naturalmente e você passou a se apropriar deles, ou você já começou com a proposição de amassar?

 

G: Primeiro, amassou. Aí eu achei que era legal e comecei a amassar.

 

N: E o que é garatuja?

 

G: Garatuja é esse tipo de coisa [mostra um tipo de riscado]. Que escreve, mas não diz nada; que tenta escrever…

 

R: Como aparece essa relação entre o desenho e a escrita no seu trabalho?

 

G: A escrita é um desenho. Pelo menos nessa parte gráfica da escrita. Acho que essa coisa meio psicografada, que é a garatuja, meio solta, ela é mais… Enfim… Não sei dizer. Tenho que pensar. Aliás, foi através disso que consegui soltar muito. Já tinham algumas coisas que andava escrevendo e via que essa escrita eu tinha mais prazer em fazer quando ela tomava um ritmo mais rápido e virava mais desenho e menos palavra. Eu gostava mais disso. Esse desenho aqui tem tudo a ver com isso; as coisas que aconteceram aqui se ampliaram com o tamanho, com a velocidade.  Daí a imagem figurativa não teve mais lugar. Então fiz alguns desenhos assim, e fiz uma exposição.

 

N: Isso foi em que ano, mais ou menos?

 

G: 2002. A exposição, eu fiz no início de 2003. O próximo passo foi tentar organizar um pouco isso. Eu já tinha essa ideia de continuar com a grande dimensão, continuar com esse material, que já tinha me apaixonado, só que não conseguia mais fazer com tanta naturalidade. Isso começou a ficar meio fake, entende? E pensei que tinha que organizar, que restringir algumas coisas. Então… 2002… Tenho péssimos registros disso. Alguns trabalhos já nem existem mais, se rasgaram ou… Porque é muito violento mesmo. Aí surgiu isso, de eleger um movimento só, para recobrir a superfície do papel. Este aqui, por exemplo, é só esse movimento do ângulo, na intenção de ocupar a folha inteira. Esses outros aqui são dessa época, também.

 

Gabriel caminha pelos desenhos que estão na sala e nos mostra que alguns deles estão com regiões bastante frágeis, com eventuais rasgados e revestimentos de proteção (com papel japonês, por exemplo).

 

N: Então você se colocava essas proposições: agora farei riscando em círculosagora farei com um ombro só…

 

G: Isso… E vou flexionar os joelhos. Esse tipo de coisa, sim. Até que chegou nesses aqui, que fiz lá em Itaparica-BA, porque o Rumos [Itaú Cultural] me deu uma residência lá na praia de Itaparica. No instituto Sacatar, vocês conhecem? É muito legal. Aliás, pra propor ser residente lá não precisa ser artista visual – pode ser escritor, por exemplo. Eles dão residências de dois meses na Ilha de Itaparica, em que eles pagam a sua estadia. Você vai e fica lá, dois meses trabalhando, num lugar que você não tem ideia! E esses desenhos aí, que fiz com outro movimento, eu usei algumas coisas como régua, algumas madeiras que encontrei lá. E era um movimento mais desordenado; nem só mais desordenados, porque tem alguns que são bem ordenados. Eu chamei de Coreográfico porque criei um tipo de partitura de dança, não era mais um uníssono ou um gesto só. Eu chamei de Coreográfico porque eu gostei do nome, mas não que tenha a ver com uma coreografia e não que esse conteúdo inicial que tem aí me interesse tanto; nunca pensei… Quer dizer, até pensei: ah, vou fazer uns vídeos a partir disso, e até fiz, vou mostrar pra vocês, mas não é uma coisa que me bate tanto quanto o desenho. 

 

Gabriel Gimmler Netto, Coreográfico 2, grafite sobre papel, 100 x 40cm, 2010. Foto: Carolna Veiga.

Gabriel Gimmler Netto, Tecido 1, grafite sobre tecido de poliéster, 700cm x 120cm, 2012. Foto: Carlina Veiga.

Gabriel Gimmler Netto, Videodesenho 1, 2012.

Gabriel Gimmler Netto, Videodesenho 2, 2012.

R: Agora, quanto ao vídeo em que você mesmo está fazendo a ação…

 

G: Sim, tem esse aqui. 

 

R: É o que você disse que havia gostado?

 

G: Tem um outro que gostei muito, que fiz lá em Itaparica. A Carolina Veiga foi me visitar um dia na residência, uma semana, e filmou. Eu havia recolhido alguns galhos do mangue, que estavam soltos, e estava desenhando nesses galhos. E havia um galho que estava muito preso na praia, na areia. E eu disse: ah, eu quero desenhar naquele galho hoje! Quer filmar pra mim? E ela filmou. E esse é um dos únicos que editei, porque geralmente não edito os vídeos. Tenho até uns vídeos que se chamam vídeo dogmas, porque teve uma vez que inventei um dogma pra fazer vídeo. Assim: a câmera que eu tiver, o som ambiente, liga e desliga, sem edição, e ele tem que transformar uma coisa em outra – a ideia era essa. Quando ela começou a filmar, eu já tinha desenhado um pouco. 

 

Som do grafite sobre o tronco.

 

R: E tem aí uma questão de filmagem, me parece. O vídeo não está apenas como registro.

 

G: Exato, tem o olhar dela, que está procurando algum enquadramento, alguma coisa na paisagem também. Eu gosto muito desse vídeo. O outro é mais documental. Esse eu acho que é mais um vídeo mesmo, o outro era meio documento e eu mostrei junto com os desenhos, então não ficou legal.

 

N: É, eu acho que, talvez, mostrar o processo das proposições, com os desenhos finais, pareça meio redundante. O vídeo da Carolina já é outra coisa. 

 

G: Exatamente. Isso já é um trabalho pronto em si. E aquele outro, quando eu mostrei o vídeo do processo – embora não tenha sido do processo dos desenhos que estavam expostos junto a ele – não ficou legal. Inclusive o nome era Vídeo de Processo, eu acho. 

 

N: E tem a ver com o tempo, também. Do dia...

 

R: Como um esgotamento do dia.

 

G: Sim, é verdade. Tem a ver, sim.

 

N: E um esgotamento da própria superfície do tronco.

 

R: E da visualidade também, que certamente vai se transformando com a chegada da noite. Você não usa nenhuma espécie de iluminação além da natural, não é?

 

G: Não! E o que vocês veem lá atrás é Salvador.

 

N: Você foi convidado para essa residência?

 

G: O Rumos Itaú Cultural deu quatro residências: uma na Alemanha, uma na Holanda, outra na Inglaterra e outra em Itaparica-BA. Na verdade, eu ganhei a residência nacional. Mas pra mim foi incrível, porque foi a mais longa. Fui com o Marcos Harum, que também foi um dos curadores do Rumos. Ele também estava lá, então estávamos juntos. E com outros artistas. Havia um sul-coreano, uma norte-americana, uma francesa e um sul-africano. Foi ótimo.

 

R: Agora já tá bem escuro.

 

N: Se escuta apenas o barulho.

 

 

 

 

 

 

N: Ah, então não é? Porque também ficamos pensando se, pra você, o processo em si já é a obra, entende? A ação de fazer os movimentos não é tanto uma questão pra você? 

 

R: É, aparece de maneira muito forte em seu trabalho uma certa performance da criação.

 

G: Pois é, não tem como não ser uma questão. Mas não é a questão central. Se fosse, até soaria mais “contemporâneo”, mas não é. O que faço com o vídeo é diferente, eu gosto, mas não tem esse conteúdo performático. Tem uma coisa da performance, da instalação… O “acadêmico”, hoje em dia, é a performance e a instalação. Que tem em meu trabalho, mas não é a questão central. Pelo menos não até agora. Posso não ter me dado conta, eu estou no meio de um processo. Talvez, um dia, eu venha a perceber algumas coisas que hoje eu não me dê conta. 

 

N: Sobre esses desenhos em que você se propunha, por exemplo, partir da ação de desenhar círculos, você vai olhando e diz paro, ou tem a ver com um esgotamento do corpo?

 

G: Sim, tem a ver com o esgotamento do corpo. Tem muito a ver com o esgotamento do corpo no dia, porque é uma sessão de trabalho. Pega, vai lá e faz faz faz faz, para e faz faz faz faz, para e faz faz faz faz, até não aguentar mais. Daí vai embora pra casa. Dificilmente, no outro dia, consigo continuar aquele desenho. Às vezes não dá, não tem a mesma energia. Daí para, e tem tudo a ver com a fadiga mesmo. Um esgotamento do corpo.  Agora, por que eu acho – fico pensando muito sobre isso; muito não, mas fico pensando – por que eu acho que a carga da performance não é tão vital no meu trabalho? Poderia mostrar uma performance, fazer o desenho na hora, as pessoas vendo….Por que isso não me interessa? Porque não tenho disposição pra isso. Não sou assim tão desprendido, sou meio encabulado, não faria isso. Uma coisa que já pensei em fazer é… Eu tenho uma irmã que é do teatro. Teatro-dança. Professora da Universidade de Pelotas. E a gente já pensou em fazer algum trabalho juntos, mas nunca fizemos. Um trabalho em que eu passasse para ela uma partitura mesmo, uma partitura de dança, feita a partir de alguns desenhos, e ela fizesse os desenhos! Talvez fosse uma ideia. Talvez, um dia. Meio Sol LeWitt, ou um Sol LeWitt de um outro jeito. Em que o desenho não seja mais eu. Talvez, daí, dê pé. Por enquanto ainda me divirto fazendo eu mesmo os desenhos. Então ainda sou meio… egoísta, nesse sentido. Mas por que não penso tanto em fazer do desenho uma performance? Porque ele gera uma marca, e a marca conta a história desse movimento. Então não é preciso que eu apareça, entende? O movimento está ali. 

 

R: Você nunca teve a chance de tornar público esse processo de composição?

 

G: Já tive. Não comigo atuando, mas em vídeo já tive. Vocês querem ver? 

 

R: Claro. E esse vídeo foi exibido em uma exposição, com outros trabalhos?

 

G: Isso. Foi no Museu do Trabalho (Porto Alegre-RS), em 2009. A exposição se chamava Sobre Desenhos. Nunca mais mostrei, me arrependi profundamente de mostrar o vídeo. Não gostei.

 

Gabriel procura alguns vídeos em seu computador.

 

G: Ah, esses vídeos eu tenho gostado muito! O André Severo, que foi curador da 30ª Bienal de São Paulo, em 2012, junto com o Luis Pérez-Oramas, foi convidado para fazer a curadoria de um projeto da revista da Fundação Iberê Camargo, daí ele me chamou e resolvi apresentar esses vídeos. Achei que seria meio ridículo fotografar um desenho e mostrar, achei meio banal, então pensei em fazer uns vídeos. 

 

R: Isso é um tecido?

 

G: É, é um tecido. E eu filmei aqui, no Largo das Artes. Em vez de fotografar o desenho, filmei o desenho. Essa ideia me pareceu meio bizarra em princípio, estranha, e eu gostei. Porque tem um momento em que entra algum movimento, tem o som ambiente daqui, o movimento do vento, e eu gosto disso. 

 

Assistimos ao vídeo.

 

R: A experiência muda completamente. E o vídeo acaba se transformando numa outra obra.

 

G: É! E eu mostrei como vídeo, o vídeo sendo o trabalho, não o desenho. Ah, tem um outro aqui… É isso, mas não muda muito. Tem esse aqui que muda mais, porque eu dei a sorte ainda do sino da igreja começar a tocar e isso começou a fazer parte do trabalho.

 

 

 

 

 

Gabriel Gimmler Netto, Videodogma 1, videoinstalação, 2012.

Gabriel Gimmler Netto, Videodogma 2, videoinstalação, 2012.

G: E tem esse vídeo que falei pra vocês, que é o vídeo dogma, em que eu tento encontrar uma situação na qual a câmera vai mentir. Vai transformar aquela coisa numa outra. 

 

Assistimos ao vídeo em que há um objeto girando e em transformação constante de cores e formas, formando uma espécie de caleidoscópio. Não conseguimos identificar de imediato do que se trata.

 

G: De acordo com a frequência, não conseguimos mais ver o contínuo dele, e então o vemos fragmentado. E se a frequência é alterada, passamos a ver o contínuo outra vez, e chega em uma outra frequência, e fica fragmentado de novo.  Mas era uma camiseta em uma centrífuga de roupa!

 

N: De repente, isso fale mais do seu trabalho de desenho do que a filmagem do processo em si.

 

G: É, porque aí tem uma escolha. A escolha é a seguinte: é eu ficar parado. Em vez de fazer o movimento, o movimento é o da coisa. A minha intervenção é ficar parado o máximo de tempo possível até conseguir uma transformação.

 

N: E quando você fez esses vídeos? Quando começou a pensar em fazê-los? Em que ano, você se lembra?

 

G: De cabeça, não, mas…2009. E tem esse aqui, olha, que fiz lá em Itaparica, também.  Sempre tem uma coisa do som. Mas só essa coisa de eleger o movimento. E o movimento, nesse caso, é o não-movimento. É ficar estático. É tudo com a câmera na mão, não tem tripé. E a câmera se confunde, eu acho, então ela estoura e dá esse tipo de efeito.

 

R: Como se a câmera não se decidisse sobre a melhor forma de olhar para essas alterações.

 

G: É, ela deixa entrar! A câmera é uma folha, na verdade. O desenho é o vento que está fazendo. Tem muito a ver com desenho. E essa coisa da sorte de aparecerem umas linhas, como essas que vemos aí. Enquanto eu filmava, essas linhas não apareciam. Elas surgiram depois, no computador.

 

R: Você estava num barco?

 

G: Não, isso aí era tipo um espelho d’água.

 

N: É, seu trabalho tem uma sempre uma relação com o tempo super forte. Que engraçado, mesmo os vídeos! 

 

G: Sim, tem. 

 

R: O tempo tanto como um procedimento de criação como de percepção também, não é, que se impõe um pouco.

 

Vemos um vídeo em que Gabriel risca seu corpo – peito, pescoço, rosto, dentes – de frente para uma webcam. 

 

R: Você fez com quê esse vídeo?

 

G: Skype. Alguém filmou do Skype. Por isso que dá essa quebra, sabe? E depois, como eu não sabia editar, chamei o Pedro Lucas, um amigão meu, e ele editou. Então um dia ele chegou e disse: Cara, botei uma trilha sonora no teu vídeo! Tinha esse Jimi Hendrix e eu me amarrei! É quase um clipe.

 

R: Com uma aproximação mais direta da performance, talvez.

 

N: E por que você decidiu fazer esse vídeo em que você risca o próprio corpo, você se lembra?

 

G: Foi curiosidade. Pra usar o corpo como suporte. Depois eu acabo dizendo que a performance no meu trabalho não é tão importante. Mas é importante! Eu que ainda não resolvi muito bem isso. Já mostrei esse vídeo em uma exposição no Atelier Subterrânea. 

 

R: Em relação às suas questões, você está investigando alguns suportes possíveis para o desenho mas, para além disso, existe alguma outra questão que seja específica do desenho e que tem te interessado?

 

G: Acho que mais do que suporte, eu estou investigando o desenho mesmo, como limite. Porque, na verdade, o desenho que eu fiz no tronco ali de Itaparica está lá até hoje. Não é um desenho que tenha essa carga de desígnio, ou de projeto, que geralmente embutimos no desenho. Essa carga de representar, ou de registrar alguma coisa. Você mesmo disse: ah, você está riscando. Eu digo: eu estou desenhando

 

R: Ou: você está escrevendo.

 

G: É, antes de desenhar. É um processo anterior ao desenho, essa coisa de instaurar uma marca. Acho que está mais aí a questão. Na instauração, mesmo, dele. No fim das contas, o desenho não busca representar muita coisa, não busca descrever nada. Ele é como foi instaurado e é o que fica ali. É a carga inicial que ele tem, não é? Do tempo de fazer, e da ação, do gesto que foi feito, e como aquela marca descreve aquele gesto. Enfim, a questão é essa. O suporte… Em algumas exposições que fiz, tinha uma coisa de uma coleta, de coletar os materiais e desenhar por cima deles. Sistematicamente. Mas mudou.

 

G: Querem ver mais? 

 

Gabriel passa a nos mostrar outras obras que estão pelo espaço. Mostra Estudo de Amplitude 2 (2004), um conjunto de seis desenhos que constituem este trabalho.

 

G: Essa era a maior parede que eu tinha no ateliê, desse formato aqui. Então ele é modular porque era o jeito de fazer. 

 

 

 

 

 

Gabriel Gimmler Netto, Estudo de Amplitude 2, 2004, grafite sobre papel vegetal, 600cm x 200cm (dimensão total). Foto: Carolina Veiga.

notas

 

N: E esse também faz parte dessa série do estudo de movimentos.

 

G: Isso.

 

R: E você fez todos ao mesmo tempo, com eles já montados, ou….

 

G: Eu fiz um de cada vez, tentando imaginar a continuação. Talvez, se tivesse uma parede maior, poderia fazer ele inteiro; mas, na época, eu fiz um de cada vez.

 

R: E é claro que você não conhecia a relação que iria se estabelecer entre os desenhos.

 

G: Ao todo, não – foi uma surpresa. Eu me lembro que, em algum momento, eu consegui montar essa parte aqui em duas paredes, depois consegui montar outra parte e ver, mas o todo eu só soube na hora da exposição. Pena que seria muito difícil pendurá-los agora.

 

R: Ver o trabalho pessoalmente é muito diferente. O grafite tem um brilho que, nas fotos, meio que desaparece.

 

G: Se eu tento trazer na foto, fica fake.

 

R: É que a foto já define onde está esse brilho, dependendo da iluminação.

 

G: Exatamente. Por exemplo, esse aqui eu vendi há pouco tempo para um amigo. Ele viu o desenho pela internet, curtiu, e vendi. Mas eu tive que falar que ele estava comprando um desenho preto sobre preto. Ele vai ter que iluminá-lo pra poder aparecer. Porque na imagem, na fotografia, eu o iluminei e aparece super bem. Agora, ao vivo, com vidro por cima, ele vai ter que iluminar o desenho pra poder aparecer. Enfim, ele comprou ciente disso. Em algum ângulo, dependendo de onde ele colocar, não vai aparecer.

 

N: E esses trabalhos aqui, são mais recentes?

 

G: Esses são bem recentes. Tanto que eu estou numa dúvida atroz quanto a eles.

 

R: É uma tela de tecido?

 

G: É, coloquei o tecido numa tela. Fiz diretamente no tecido e depois coloquei na tela, mas meio que me arrependi. Mas resolvi guardar, estanquei esse processo e, já que tinha que guardar, guardei na tela que é mais seguro. Esses são bem recentes, são do ano passado (2014). E são dos poucos que tem inspiração numa imagem, que é…Surgiu do movimento. Surgiu naquele ali, na verdade, surgiu naquela curva ali. Eu estava fazendo ele, as retas assim, lá daquele canto, e surgiu uma curva. E essa curva me remeteu a uma imagem muito forte, porque eu havia acabado de visitar aquela oca, no Parque Lage. E aquela coisa ficou muito na minha cabeça, eu fiquei muito a fim de fazer uma oca. E aí comecei a tentar perseguir essa curva da oca, da palha. Então esse aí tem uma coisa da imagem que é muito…Uma imagem que antecede ele, sabe? Não que antecede, mas que insp…Que surgiu, mas acabou inspirando…Sei lá. 

 

R: Interessante como o grafite também muda no tecido e o brilho já é outro.

 

G: É o fixador que apaga um pouco e deixa mais fosco. Só que, no papel, consigo guardar melhor. No tecido, o grafite cai muito. João Cícero foi muito legal no texto que escreveu pra Arte & Ensaios! Ele reforçou em mim essa coisa do desenho. Embora, falando com vocês agora, essa coisa da performance também fique mais evidente e eu também comece a achar que tem isso mesmo. 

 

N: Acho que quando pensamos no seu trabalho em relação ao gesto, à exaustão, ao corpo…

 

G: Você falou isso da exaustão, e era uma coisa sobre a qual já não pensava mais. Eu me lembro que teve uma época em que, pra definir… Em algum lugar, me pediram pra escrever sobre isso e eu fiz uma frase que era tipo assim: O movimento que dita a forma, ou que cria a forma, e a fadiga e o cansaço são o limite da ação. Vocês perceberam essa coisa do cansaço que é muito evidente e sobre a qual eu já não pensava tanto.

 

R: Atualmente, você está produzindo? Tem algum projeto de exposição?

 

G: Não, atualmente, não. Eu dou aula todas as manhãs. Dou aula de desenho, figura humana, cor, metodologia visual, essas coisas do curso básico de design, e isso me toma muito tempo. Então, nesse momento, eu to produzindo pouco. Pra manter a problemática, manter a questão. Quanto a fazer exposição... Exposição não quer dizer que você está mantendo a questão do trabalho. Às vezes é o contrário, faz o que já tem, e faz o que não tem mais questão, faz pra mostrar e tal. Pelo menos, essa é minha experiência, em algumas exposições que fiz foi dessa maneira. Essa coisa do trabalho ressurgir, o processo de elaboração dele é outro, o tempo é maior, ele não é o tempo da demanda da exposição. No meu processo de trabalho é assim. Então eu não posso deixar ele se estancar, porque aí ele se perde e, pra voltar, fica mais difícil.

 

N: Vou desligar o gravador.​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​

 

 

[1] "E a luta contra o sentido de desenho tradicional solicita do artista uma amplitude do próprio conceito do gesto de desenhar, unindo em sua poética a performance e a instalação como procedimentos do próprio desenho." In: CÍCERO, João. Desenho e risco – A poética de Gabriel Gimmler Netto. Arte & Ensaios, revista do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais/ EBA/UFRJ, ano XXI, n. 27, p. 65,  jun. 2014.

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[2] Espaço artístico independente, em Porto Alegre, com ateliês coletivos, exposições, performances, cursos, debates e outros. Gerido pelos artistas Lilian Maus, Túlio Pinto, Guilherme Dable, Adauany Zimovski, James Zoertéa e o próprio Gabriel Netto, funcionou de 2006 a março de 2015, quando foi anunciado seu encerramento.

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Natália Quinderé é escritora, ilustradora, e doutoranda em História e Crítica de Arte pelo Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ.  É autora de O caminho da gota d’água  (Editora 34, 2009) e, desde janeiro de 2014, atua como coeditora executiva da revista Arte & Ensaios (PPGAV/EBA/UFRJ).

 

Rodrigo Carrijo é graduando em Teoria do Teatro pela UNIRIO, bolsista pesquisador de Iniciação Científica do CNPq e coeditor da revista Ensaia.

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- jun. 2015 -

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