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A escrita como edição

Bruce Andrews entrevistado por Laura Erber e Micaela Kramer

Com a colaboração de Sally Silvers e Karl Erik Schøllhammer e tradução de Rodrigo Carrijo

Nascido em Chicago em 1948, mas radicado em Nova York desde os anos 70, o poeta e performer Bruce Andrews esteve no Brasil em julho de 2009 acompanhando sua parceira, a coreógrafa e também performer Sally Silvers, que se apresentou com a companhia de dança de Yvonne Rainner, com quem colabora. Bruce Andrews é um dos fundadores da revista L=A=N=G=U=A=G=E, iniciadora do movimento de mesmo nome. Além de poeta prolífico, com mais de 40 livros publicados, ele é também professor de Ciências Políticas na Fordham University de Nova York desde 75. Nesta entrevista, realizada no dia 24 de julho daquele ano no Rio de Janeiro, com a participação de Sally Silvers e Karl Erik Schøllhammer, Bruce faz um balanço crítico do projeto que movia os L=A=N=G=U=A=G=E writers e reflete sobre aspectos dessa experiência que persistem em sua produção poética atual. Desfazendo uma série de mitos e mal-

Imagem do conjunto completo da revista L=A=N=G=U=A=G=E 

entendidos que rondam a história e a recepção do movimento L=A=N=G=U=A=G=E, Bruce traz informações enriquecedoras sobre o contexto no qual aquele projeto surgiu, e faz isso refletindo tanto sobre a sua potência quanto sobre as limitações. Ao longo de sua fala, ele comenta tendências atuais da poesia norte-americana e os trabalhos performáticos que vem realizando em parceria com Sally Silvers. 

Fala-se muito do L=A=N=G=U=A=G=E como um projeto de rompimento com valores subjetivos e expressivos que sustentavam a produção poética dos anos 50-60 nos Estados Unidos. Investindo numa escrita que questionou a referencialidade e colocou em primeiro plano o funcionamento da linguagem, o L=A=N=G=U=A=G=E também teve um importante papel no alargamento dos horizontes de leitura da sua geração, redescobrindo autores como Gertrude Stein, para os quais a literalidade, assim como os aspectos sensíveis, visuais e sonoros da língua, eram altamente relevantes. Essa apropriação da linguagem em sua materialidade – se é que podemos chamá-la assim – a que os autores do L=A=N=G=U=A=G=E pareciam aspirar é uma questão que se renovou nos últimos anos quando torna-se novamente necessário criar novos padrões de percepção e abordagem do texto, chamando atenção para os usos da palavra fora dos limites da literatura e do modelo do livro como definidor da experiência literária. Gostaríamos de saber de que modo vocês pensaram, na época da criação da L=A=N=G=U=A=G=E, a relação entre linguagem, poesia e literatura, e como você a encara hoje em suas práticas criativas. 

Bruce Andrews: Uma das coisas importantes para tentar entender o que esteve envolvido no projeto dos escritores da L=A=N=G=U=A=G=E é tudo aquilo a que nos opusemos, o que nos precedeu, o que as tradições que ainda pareciam relevantes e em jogo trouxeram para a gente, então parte disso é histórico. Eu chamo esse fenômeno de L=A=N=G=U=A=G=E writing. Ou L=A=N=G=U=A=G=E poetry. Éramos em geral escritores nascidos nos anos imediatamente seguintes à Segunda Guerra Mundial, ou seja, entre o final dos anos 1940 e o início dos anos 1950. Começamos a entrar em cena no começo dos anos 1970, período bastante interessante nos Estados Unidos, com alguns paralelos no Canadá, na Grã-Bretanha e paralelos mais distantes na Europa, assim como, possivelmente, na América Latina, sobre a qual não conheço tanto. Estávamos diante de uma grande herança de poesia experimental, que é o que veio a ser a Nova Poesia Norte-Americana, representada pela antologia de poemas nos Estados Unidos editada por Donald Allen, a The New American Poetry, 1945-1960. Então quando entramos em cena, era essa a principal possibilidade do que se poderia fazer como um poeta “não-mainstream”. E tivemos a oportunidade de nos tornarmos essencialmente  a terceira geração dos Novos Poetas Norte-Americanos. E em geral escolhemos não fazer isso. Dissemos não a isso.

E o que você falou sobre essa subjetividade expressiva, ou uma espécie de romantismo sobre o eu – algumas vezes um narcisismo envaidecido sobre o sujeito – estava muito em primeiro plano na Nova Poesia Norte-Americana. Embora seu trabalho tenha inventado vocabulários novos, colocado em jogo novos assuntos, colocado em jogo muito do que era oposto ao tom altamente clássico e à textura e vocabulários da poesia tradicional, rompido com os dispositivos estruturantes tradicionais – a Nova Poesia Norte-Americana foi muito mais disjuntiva, e investia muito menos na sintaxe clássica, no fechamento da narrativa tradicional, comparada a uma poesia mais tradicional. Mas eu diria que ela ainda estava, para nós, muito contaminada por esse problema do assunto estar centralizado no escritor, e centralizado no ego do escritor; centralizado na personalidade do escritor, e isso era uma coisa sem a qual queríamos tentar trabalhar. A outra coisa que aconteceu nesse ponto foi que toda a herança pré-Segunda Guerra Mundial, ou pré-escrita experimental dos anos 1960 nos Estados Unidos, tornou-se disponível para nós de uma maneira que não havia acontecido com a geração anterior. Então a figura-chave para a nossa faixa-etária, eu diria, foi Gertrude Stein. E era a poesia inicial, totalmente radical de Gertrude Stein entre, digamos, 1912 e 1925, talvez, que veio a ser publicada como mais do que apenas a edição Yale… Esses trabalhos foram então publicados, a gente os lia como se fossem trabalhos contemporâneos. Tudo do [movimento] dadá europeu, trabalhos radicais do início do século vinte, tudo que estava então disponível para nós de uma maneira que não tinha sido para as pessoas nascidas vinte anos antes de nós…Tudo que de repente nós tínhamos era o Zukofsky tardio, o Oppen inicial, os objetivistas, tínhamos Mina Loy, [Lorine] Niedecker, tínhamos todo um conjunto de coisas  que eram frescas e novas e com as quais podíamos lidar… Tivemos os Poetas Concretos, tivemos a Poesia Visual, tivemos a Poesia Sonora, todas essas coisas eram um nicho nos anos 1950 e 1960, e em geral desconhecidas aos poetas vinte anos mais novos [do que nós]. Eu só queria explicar um pouco historicamente isso, porque são coisas que são seriam conhecidas.

Quando começamos o projeto, éramos 40, 50, 60 pessoas associadas a essa comunidade dos então chamados L=A=N=G=U=A=G=E writers, e mantínhamos o contato, no início dos anos 1970, sobretudo por meio de cartas. Na verdade, usávamos o sistema postal com entusiasmo e demos início a algumas revistas próprias, e passamos a manter o contato um com o outro.  Então havia essa rede de escrita, fortemente curvada, inclinada às outras artes, e éramos amigos dessas pessoas. Então saíamos com cineastas experimentais, musicistas experimentais, figuras experimentais do mundo da dança – Sally Silvers, sentada aqui enquanto faço esta pequena entrevista, seria um exemplo disso – e havia uma série de influências mútuas. E quando começamos, chamamos o que estávamos fazendo de Language-Centered-Writing. Não chamávamos de poesia. O foco estava em – e por chamar de language-centered, queríamos dizer centralizado na linguagem como diferente de centralizado em qualquer outra coisa. Então aquilo não estava centralizado no material temático ao qual a escrita iria se referir; não estava focado na expressão subjetiva. Aquilo estava focado nos mecanismos, na produtividade, na geratividade da linguagem. E então isso nos levou a todo tipo de investigação quanto ao que era a linguagem e como ela funcionava. Não éramos linguistas. Não éramos estudantes de múltiplas línguas estrangeiras.

E o que estávamos fazendo não era ficção, não era narrativa, não era verso, não era poesia tradicional, não era tampouco a Nova Poesia Norte-Americana, porque não havia aquele foco lírico no eu como autor, não era confessional, era mais abstrato, do modo como eram as artes visuais, as quais a poesia sempre rejeitou, então parte do problema… Em outras palavras: teria sido mais fácil para nós chamar o que fazíamos de poesia se não acontecesse de a poesia ser tão fodida e limitada e um pouco pateticamente estreita pelo menos em sua aparência oficial. Bem, todas essas outras coisas estavam acontecendo, mas a aparência oficial da poesia era tão limitada que nenhum de nós se via trabalhando naquele terreno. E muitos de nós não tínhamos formação em Inglês, não tínhamos sido alunos de escrita criativa, não tínhamos vindo de cursos. Charles Bernstein tinha se graduado em filosofia na universidade e estava escrevendo, traduzindo prosa médica – escrita por médicos – para revistas médicas. Eu era professor de Ciências Políticas. Alan Davies trabalhava instalando sistemas de ar condicionado em grandes empresas. Michael Gottlieb trabalhava vendendo os direitos dos filmes para a Warner Brothers. James Sherry trabalhava em um banco. (Quer dizer…) Então não vínhamos de um passado literário tradicional. Alguns de nós…Steve McCaffery, no Canadá, trabalhava como motorista de aeroporto, sabe. Então estávamos pensando nisso como um gênero, mas o problema era a recepção. Então essa é uma coisa crucial para todos esses outros campos artísticos. Quem lia o que estávamos fazendo – nossos amigos artistas estavam interessados porque aquilo era baseado em princípios estéticos similares àqueles com os quais eles trabalhavam. Mas quem mais se interessaria por isso? E acabou que as únicas pessoas que se interessaram foram – de um modo intenso entre a metade e o fim dos anos 1970 – os poetas. Então aquilo acabou sendo chamado de Language Poetry. Isto é, uma sub-categoria da Poesia com letra maiúscula. Para nós, e eu digo isso ao menos por mim mesmo, este é o símbolo do nosso fracasso: o fato de que acabamos nos tornando uma subcategoria de um gênero estabelecido. O que significava que estávamos presos em ter que ser generosos às tradições daquele gênero, estávamos presos em ter que atender às pessoas que eram os administradores daquele gênero, estávamos presos em… Você sabe, em todo aspecto nós nos tornamos poetas, de um certo modo.

E de que modo a estigmatização do L=A=N=G=U=A=G=E acabou interferindo na compreensão do projeto tal como vocês o pensaram naquela época? 

Bruce Andrews: Nós seríamos depois acusados de abandonar a referencialidade, seríamos acusados de abandonar o eu lírico, seríamos acusados de abandonar as tradições narrativas que são impostas pelas gramática e sintaxe normativas. É que há uma narrativa em uma frase ou em uma sentença com a qual não estávamos preocupados, não estávamos interessados, mas se o que estávamos fazendo fosse visto como poesia, então, de repente, estávamos violando as normas, ao invés de apenas sermos inventivos, ao invés de apenas fazermos um trabalho. E trabalhando com objetos, trabalhando com a linguagem como material, trabalhando com ela como objeto, de repente éramos os bad boys, éramos os rebeldes, éramos os transgressores e bla bla bla. Assim que fomos notados como poetas e controlados pela máquina da profissão de poeta – a profissão de poeta não pode lidar com uma comunidade, a profissão de poeta não pode lidar com um acontecimento de 50, 60 pessoas, a comunidade poética diz: “Ah, digam-nos quem são os cinco grandes poetas. Dêem-nos cinco nomes, dêem-nos os dois nomes, os três nomes.” E então as contribuições que muitas dessas pessoas fizeram foram apagadas, ficaram desaparecidas. Nós nos percebíamos menos interessados em certas convenções sobre referência, mas não para nos opormos à referência. A linguagem é referencial, um período. Uma palavra é referencial. Sílabas são em geral referenciais de certa maneira. Charles Bernstein e eu mencionamos isso na introdução ao L=A=N-G=U=A=G=E Book: nós estamos interessados em explorar a referencialidade, nós estamos interessados em pensar em suas possibilidades, seus vetores, suas trajetórias, suas diferenciações. Não apenas dizer não a ela. Talvez estejamos de saco cheio dos seus usos convencionais, mas aí é diferente. E a mesma coisa com o sujeito, quer dizer, todos estamos coercivamente investidos e interessados no eu, no sujeito, mas aprendemos um pouco de sociologia, estamos interessados na construção social do sujeito, estamos interessados no investimento social do sujeito. Você sabe, é a mesma coisa, sem se opor… Ou o outro [apontamento] clássico seria: “Os L=A=N=G=U=A=G=E 

writers, eles são opostos à emoção. Eles são opostos ao sentimento.” Quer dizer, não – se você está interessado em explorar a construção da emoção, a construção do sentimento no texto, então, ao invés de derramar suas entranhas como um escritor, dessa maneira narcísica,  e chamar toda a atenção para si próprio como um escritor, então você é acusado de ser sem sentimento, um robô ou um autômato, como se o autor fosse apenas uma máquina de algum tipo. Bem, não. Porque – e é disso que se trata, e que eu acho que tem se tornado mais claro (boa parte disso) nos últimos anos – o nosso foco estava no leitor. Nosso foco estava em abrir as possibilidades para o leitor. E muito do que não gostávamos no verso tradicional,  na poesia tradicional, na literatura tradicional, era sua concentração no posicionamento do autor. E o foco no posicionamento do autor de uma maneira que submetia o leitor à sua agenda. E, para nós, não, estávamos interessados em tentar criar uma experiência mais excitante para o leitor. Se olharmos agora para trás, o que estávamos fazendo era tentar abrir as coisas, e tentar rejeitar o seu fechamento. Para mim, isso é possivelmente o mais perto de uma noção sumária: a de que estávamos buscando rejeitar os fechamentos submetidos ao leitor, fechamentos orbitando ou confinando o leitor. 

Gostaríamos que você falasse um pouco sobre a ideia de voz e de coletividade - collective voices como você já disse em outras ocasiões - que perpassa sua poesia. A que ideia de comunidade essa voz coletiva corresponderia? E ainda, esse trabalho com a multiplicidade das vozes seria pra você um meio de romper o circuito fechado das patologias pessoais? 

 

Bruce Andrews: Quando eu estava falando de comunidade, estava me referindo a ela como um grupo de pessoas, cada uma fazendo uma pequena contribuição para um projeto coletivo. Mas nunca havia o sentido de uma voz coletiva. Então não havia linha partidária, não havia esse tipo de hierarquia nas nossas relações sociais. Um ou dois podem ter pretendido, ou fantasiado sobre essa espécie de autoridade, mas isso nunca foi dado a eles.  De certo modo, portanto, tratava-se talvez de uma investigação coletiva das possibilidades da voz individual, tal como esta seria transmitida a um leitor. E isso ficou complicado porque, quando quer que haja essa subjetividade lírica tradicional tão valorizada na tradição poética – como estava dizendo um minuto atrás – ela configura, como um programa, a noção de identificação. De modo que os significados disponíveis ao leitor são filtrados pela voz pessoal do autor. Supõe-se ser isso o que faz da poesia uma coisa maravilhosa. Nós frequentemente discordamos. Então a questão é a seguinte: se você não quer que o leitor se identifique com a voz pessoal do autor, e você quer que o leitor pense com a sua própria voz, e as possibilidades de vocalização para ele, ou ela, como você organiza isso? Qual a mise-en-scène da situação? E frequentemente pode ser o caso de lançar o que eu às vezes chamo de matérias-primas da voz, as matérias-primas sociais da subjetividade. Mas não estamos falando de uma voz ou subjetividade inteiramente formadas e espatifando-as em pequenos pedaços – estamos considerando os pequenos pedaços dos quais o sujeito é construído e poderia ser reconstruído. Não se trata portanto apenas de um trabalho de demolição, não é só colocar a dinamite no processo todo – trata-se realmente de começar do zero e tentar ver as diferentes maneiras de se fazer. Então isso faz parte do processo, e isso vai resultar no interesse pelos detalhes microscópicos do texto, no foco na materialidade dos textos, no aspecto visual dos textos, na estrutura sonora dos textos –  coisas sobre as quais éramos todos incontornavelmente curiosos, em parte porque elas são mais abertas, elas são a matéria-prima social. Do mesmo modo que havia um interesse em uma espécie de processo de alteridade, um grupo de pessoas escrevendo a partir de heranças pessoais que não são próprias. O oposto de uma autobiografia ou uma confissão. Eu estou envolvido em um projeto neste momento, desde alguns anos, que é o projeto White Dialect Poetry, de uma investigação do dialeto de escrita em verso do século 19 – um gênero bastante popular da poesia norte-americana, completamente esquecido atualmente. Este projeto White Dialect Poetry é sobre o som e, em certo grau, a inflexão visual da materialidade da linguagem em localizações regionais bem específicas – em Appalachia, no Centro-Oeste dos Estados Unidos, e é sobre esses dois aspectos da coisa que eu venho trabalhando. O título geral desse projeto é “Success without goals”, que tem um pouco o sabor da natureza do privilégio branco, e a brancura [whiteness] tal como ela está construída nos Estados Unidos. Mas, outra vez, não sou eu explorando a minha etnia; sou eu explorando as matérias-primas através das quais as subjetividades e coletividades sociais de outras pessoas – e, em certo grau, as minhas, mas sobretudo as de outras pessoas – são construídas, e são recebidas, são tratadas com preconceito, tratadas com as concessões do privilégio, e os gostos. Há então esse sentido, por exemplo, do…Vejamos: duas das mais novas e discutidas sub-tendências da poesia norte-americana atualmente são: (1) a baseada na apropriação, a chamada poesia conceitual, e (2) a baseada na apropriação que parte sobretudo de buscas de palavras no google e da construção de coisas a partir da matéria-prima disponível na internet. A apropriação conceitual faz algumas coisas parecidas. Ambas estão fortemente interessadas nesse processo de alteridade, onde elas estão apenas rejeitando o lugar do escritor como o eu lírico usando uma linguagem que não é sua, e tentando colocá-la em primeiro plano, algumas vezes de um modo engraçado ou mais irônico, ou bobo, ou, às vezes, de uma forma investigativa muito mais analítica.

 

Gostaríamos que você comentasse um pouco mais sobre o seu processo criativo. 

 

Bruce Andrews: No caso da minha própria escrita, um par de décadas atrás eu comprei um cortador de papel e, desde então, talvez desde os últimos vinte e cinco anos, eu escrevo quase tudo em folhas de 8,5 x 11 polegadas (215.9 x 279.4 mm) cortadas em seis. E eu basicamente escrevo duas, três, quatro, cinco palavras em um cartão, ou em um pedaço de papel desses, e o coloco numa caixa. Então eu não me sento para escrever um poema. Eu me sento no sofá, tiro um monte desses cartões da caixa e os edito. Então escrever, para mim, agora é editar. O que acontece com isso, uma bobagem em certo sentido, um procedimento técnico, é que eu nunca – e talvez eu esteja agora anos atrás quando eu tiro o material da caixa, ou trabalho em materiais de cinco, dez anos atrás – eu não tenho qualquer registro de ter escrito essas coisas. Para mim isso só serve para uma coisa, o caráter disjuntivo da escrita, que não queríamos conceber como uma superfície contínua e lisa, porque a pensávamos – ou eu a pensava – como largamente sufocante para o leitor. Então ela era automaticamente disjuntiva, automaticamente modular – eu poderia movimentar o material, ele não tinha nenhum tipo de sequência fixa, ele não vinha de modo algum pré-programado, as frases no meu trabalho são quase sempre construídas por quatro ou cinco pedaços de papel. Eu geralmente não penso em frases – penso em frases, aglomerados de texto, pequenos pedaços vocabulares inusitados e afins. Ocorre que isso acaba me dando uma certa liberdade que eu penso experienciar como leitor. Eu leio essas coisas com a liberdade de não ter que sempre traduzi-las de volta para alguma pessoa imaginada, um autor, uma epifania – não é como se eu olhasse para alguma coisa que escrevi ontem e me lembrasse daquele momento, me lembrasse da bela epifania que tive, me lembrasse da situação que vivi naquele momento. Nada menos do que como ler a escrita de qualquer outra pessoa, geralmente. Estou interessado em me carregar dos vetores centrífugos de sentido que as palavras me dão, e fico radiante com o material, com a organização da materialidade da linguagem que está ali à minha frente. É isso o que me deixa excitado, é isso o que me entusiasma em minha própria experiência, e é isso o que eu tento fazer como um escritor. 

 

E como é o trabalho que você vem realizando junto com a Sally (Silvers)? Vocês encaram essa parceria como um trabalho de tradução entre diferentes linguagens? 

 

Bruce Andrews: Bem, de um modo geral eu tenho colaborado com Sally Silvers há vinte anos, agora.  Estamos romanticamente envolvidos por um pouquinho mais do que isso. Nesse período eu tenho sido seu diretor musical; então eu fiz as paisagens sonoras, o design sonoro, e compus músicas para as suas peças durante um par de décadas, e talvez isso seja um outro assunto, para um outro dia… Mas nos anos mais recentes eu comecei a pegar o texto para usar com a coreografia da Sally, e um pequeno aparte disso tem sido o meu desenvolvimento de uma prática do que eu chamo de “edição ao vivo” [“live editing”], que é algo que tem me animado muito; e, de certo modo, exatamente como eu me sinto ao usar essa metodologia bastante modular de escrever poesia com papel picado, eu tenho me surpreendido que outras pessoas ainda não experimentaram fazer isso. Eu descrevi um pouco o meu processo de escrita como uma edição, então novamente, eu estou sentado olhando para talvez quarenta ou cinquenta pedaços de papel e construções de frases, inserindo uma palavra de um cartão no meio de outros dois ou três cartões e construindo três frases… E aí eu percebo que posso fazer isso no palco! Eu posso fazer isso como parte de uma performance. Eu não queria vir apenas com alguma coisa pré-concebida e tentar lê-la como um acessório da dança – aquela era uma dança do lado da recepção, ou do ponto de vista da recepção – mas se eu pudesse, de alguma forma, fazer o que eu fiz enquanto editava, aí eu teria a liberdade dos deslocamentos das malhas textuais, dos golpes temporais no entorno, momento a momento, e de mudar as coisas in loco, e de construir essas frases ao vivo para responder, para interagir com o que os musicistas estavam fazendo, ou com o que os dançarinos estavam fazendo, e isso se revelou para mim como uma metodologia completa e maravilhosa.

 

Sally Silvers: Olha, eu acho que assim como o Bruce estava falando sobre sua escrita ser centralizada na linguagem, eu diria que existimos num plano estético similar, e que eu considero o meu trabalho como sendo centralizado no movimento, sendo este o seu foco. Então o aspecto sonoro do seu trabalho, para mim, funciona quase que da mesma maneira como a música funciona com o movimento. Portanto existem as palavras, os sons, e aí há o aspecto social que eu considero o corpo – estou mais interessada no modo como o corpo se move como um motor social do que naquele corpo que é treinado numa técnica de dança. Então eu acho que isso acrescenta um elemento de aspiração política no qual também convergimos no trabalho que fazemos juntos. Quando você está assistindo dança, você frequentemente sente que quer ir para algum lugar além daquele para onde as palavras podem te levar. E ainda, se você meio que vir junto nesses diferentes planos de intersecção entre as palavras e o corpo em movimento, então você vai estar seguindo na mesma onda dessas coisas que, em geral, se contradizem, o que cria uma espécie de tensão entre ver e escutar e aparecer com um outro tipo de sentido pelo qual o corpo e as palavras podem trabalhar juntos. Por isso eu acho que o trabalho que fazemos, em função tanto dos acordos quanto das discordâncias, ele meio que vem de uma colaboração de uma maneira que a maior parte da dança ou da poesia não faz, ou pelo menos não a esse ponto. Algo surge do problema de como essas coisas podem trabalhar juntas quando elas geralmente não podem. Então há uma espécie de resolução do problema no lugar mesmo onde ele aparece. 

 

Karl Erik Schøllhammer: Quer dizer que vocês não estão controlando os fins, a teleologia do sentido, mas, na verdade, construindo uma cena para que o sentido apareça. Para que ele venha à tona. Há uma técnica nisso, quer dizer; ou uma poética [poiesis], se preferirem: como criar as condições para uma certa criatividade acontecer. Isto é, se eu posso interpretar dessa maneira…

 

Bruce Andrews: Sim, acho interessante porque, geralmente, as pessoas não compreendem isso. Quer dizer, acho que as pessoas podem não enxergar algo no meio do espectro entre um controle de resultados amarrado e pré-determinado quando se trata do sentido – uma espécie de ditadura sobre o sentido –, em um fim do espectro, e no outro fim a falta de controle como caos ou aleatoriedade, como técnica fortuita. Sabe, então… Aliás essa é uma outra coisa, que eu não sei se o trabalho da Sally tem sido acusado disso, mas certamente o trabalho dos L=A=N=G=U=A=G=E writers tem, e todos eles, todos nós ficamos, por exemplo, muito intrigados com o legado de John Cage na música e na dança e em outras formas de arte, e, em particular, no trabalho de um dos grandes poetas da geração anterior, para mim, nos Estados Unidos: Jackson Mac Low, que de fato foi 0 poeta que levou os princípios cageanos de geração de possibilidades ao seu limite máximo, eu acho, nos Estados Unidos. O que nos intrigava no trabalho do Jackson não era o método, mas os resultados. Então a gente não estava nem aí em jogar com o dado ou a coisa do eu, sabe, ou ter que seguir rigidamente certas regras pré-estabelecidas. Quer dizer, Jackson costumava anexar parágrafos elaborados sobre como cada poema havia sido escrito; como se isso fosse interessante. Não, para nós o que era interessante era a experiência de ler esses textos, que tinham níveis de justaposição e estranhamento profundamente fascinantes para a gente. Mas percebemos que podíamos na verdade exercer mais controle sobre a situação do que ele queria permitir, e, ao fazer isso, elevar a probabilidade de alcançarmos aqueles tipos de resultado, e os alcançarmos mais sistematicamente. Então, por exemplo, queríamos editar. Não queríamos apenas jogar o dado e chegar num texto, ir para o dicionário e pegar a quinta palavra após cada uma das palavras usadas no texto; ou qualquer uma das técnicas que o Oulipo, os escritores experimentais franceses, estavam usando. Não, a gente não ligava muito para o processo. Novamente, eu estou super generalizando. Veja, estou falando apenas por mim mesmo, então está tudo bem. Mas os resultados é que eram muito fascinantes. Então para nós, para tentar engajar o leitor no processo de construção de significado, não queríamos apenas manipulá-lo com sentidos pré-dados, mas não queríamos igualmente apenas uma produção de significado arbitrária ou caótica, ou – para muitos de nós, para mim, digamos – desleixada. Como se não importasse qual palavra era qual, ou quais sílabas, ou como elas soariam, ou onde as coisas se posicionariam; como se tudo aquilo pudesse ser uma questão de sorte. Como se o fascinante fosse isso. No final, para mim, o foco no processo acaba… acabava – e isso apesar do Budismo de Jack Mac Low e tudo o mais – parecendo muito egocêntrico. O processo era muito envaidecido; havia muito investimento na parte do autor no processo, e para o leitor isso significava que você ainda tinha que traduzir a sua experiência de volta ao que o autor apresentava. O autor estava propondo o processo, você estava interessado na proposta; continua-se venerando o autor. Eu queria venerar os resultados, a experiência que estava disponível. Então nós tentamos. Nós somos meticulosamente fascinados pelo processo de edição, os dois de nós, tanto eu quanto Sally.

Bruce Andrews (Chicago, 1948) é poeta norte-americano e um dos principais fundadores da revista (e movimento) L=A=N=G=U=A=G=E, projeto motor dos L=A=N=G=U=A=

G=E poets. Possui formação em Relações Internacionais pela Universidade Johns Hopkins e em Ciências Políticas pela Universidade Harvard. Desde 1975, é professor de Ciências Políticas da Universidade Fordham (EUA). É autor, entre outros, de  I Don't Have Any Paper So Shut Up (Or, Social Romanticism) (1992) e Collaborations 

with Sally Silvers, Word Maps, Bricolage & Improvisation (1995). Alguns de seus trabalhos têm sido republicados, e parte de seus projetos mais recentes estão disponíveis online.

Sally Silvers (Greenville, 1952) é uma coreógrafa norte-americana. Vive em Nova Iorque, onde tem realizado trabalhos artísticos desde os anos 1980. Criou mais de setenta trabalhos em dança, teatro e poesia. É Diretora  Artística da  Sally Silvers & Dancers, e tem criado projetos em performance junto a Bruce Andrews sob o nome de BARKING . Silvers coeografou e codirigiu os filmes de dança Little Lieutenant (1993) e Mechanics of the Brain (1997), em parceria com o cineasta  Henry Hills, além de uma série de espetáculos 

em dança, como Storming Heaven (2000) ou  Be SOMEBODY... Be ANYBODY! (2011). Trabalha também como curadora em diversos campos artísticos, e como professora convidada em algumas universidades estadunidenses.

Laura Erber (Rio de Janeiro, 1979) é escritora, artista visual e professora adjunta do departamento de Teoria do Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), além de compor o Conselho Editorial da Revista Ensaia. Graduou-se em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002). É mestre e doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atua na área de Letras, voltando-se para a relação entre poesia, performance e visualidade. Sua pesquisa atual

rata dos desafios colocados à história e historiografia da arte moderna, a partir confronto entre teoria e práticas modernas da imagem, tomando por objeto os desenhos animados das primeiras décadas do século XX. É autora, entre outros, de Insones (7Letras, 2002), Os corpos e os dias (Editora da Cultura, 2008), finalista do prêmio Jabuti 2009, bénédicte vê o mar (Editora da casa, 2011), Ghérasim Luca (Eduerj, 2012) e Esquilos de Pavlov (Alfaguara, 2013).

Micaela Kramer é Professora Adjunta de Spanish and Portuguese Studies na Universidade Rutgers (EUA). Possui doutorado em  Literatura Comparada pela Universidade de Nova Iorque e mestrado em Literatura Comparada pela Universidade Paris III - La Sorbonne Nouvelle.  Seus interesses de pesquisa incluem literatura testimonial e de prisão, teoria crítica e política, estudos pós-coloniais, psicanálise e biopolítica. Tem interesse, particularmente, pelo cinema documental brasileiro, o que a levou a coorganizar, em 2008,  o festi-

val de cinema documentário Documenta Brazil 2008: Rhythms of Brasilidade, na Universidade de Nova Iorque. Tem trabalhos publicados na Revista Estudios, Grumo, Papel Maquina: Revista de Cultura, e Critical Studies in Improvisation.

Karl Erik Schøllhammer é um teórico e crítico de literatura dinamarquês radicado no Rio de Janeiro e professor associado do departamento de Letras da PUC-Rio. Possui doutorado em Semiótica pela Universidade de Aarhus (DK), além de mestrado e graduação em Língua e Literatura Nórdicos e graduação em Língua e Literatura Espanhola pela mesma instituição. É autor, co-autor e editor de vários livros, entre eles: Linguagens da Violência (2000), Novas Epistemologias (2000), Literatura e Mídia (2002),

Literatura e Cultura (2003), Literatura e Imagem (2005), Literatura e memória (2006), Henrik Ibsen no Brasil (2008), Além do visível - o olhar da literatura (2007) e também tradutor de autores escandinavos, como Peter Høgh, Lars Noren, Søren Kierkegaard, Jon Fosse e Henrik Ibsen.

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