revista ensaia/ n.3_junho2017/ PEÇA
Artista não come
Miguel Seabra
Ao ler Poética (Companhia das Letras, 2013) de Ana Cristina César, deparei-me com o poema Criação. Além de um poderoso manifesto sobre a relação da artista com a materialidade – obsessão, angústia, dependência, desespero – fui tomado pela sua possibilidade visual. Um texto para ser dito, para ser visto. O roteiro foi escrito declaradamente para ser interpretado/incorporado pela performer e violoncelista Mariana Carneiro da Cunha. Atualmente, o projeto busca financiamento para a produção do filme e obtenção de direitos autorais.

Miguel Seabra Lopes (Lisboa, 1975) escreve roteiros e dirige filmes desde 1998. Desde 2011, dirige, escreve e monta em parceria com Karen Akerman. Realizou, entre outros, os filmes Confidente (exp, 2016, 12'); Talvez deserto talvez universo (doc, 2015, 99'); Outubro acabou (fic/doc/exp, 2015, 24'); Incêndio (fic, 2011, 23’); Alasca (fic,
2009, 21') e Perímetro (fic, 2006, 24’).
1 - INT. BANHEIRO - DIA
Uma pia redonda e branca com torneira de ferro banhada por luz difusa. Estaticidade. Ouve-se água a correr sobre mãos que se esfregam uma na outra. O som como memória ativa do ato.
2 - INT. SALA - DIA
Uma mesa de madeira. Sobre ela, um jogo americano. Sobre ele, um prato branco com presunto. Fatias finas organizadas como uma estrela. Frente a mesa, uma cadeira de madeira com costas altas. De pé, com as mãos fechadas sobre as costas da cadeira, uma artista de 40 anos. Usa um vestido comprido abotoado. O cabelo arranjado, puxado para a nuca, mostrando o rosto. Os olhos fixos no prato de presunto.
3 - INT. BANHEIRO - DIA
Uma pia redonda e branca com torneira de ferro banhada por luz difusa. A água corre da torneira para o ralo escancarado. O silêncio permite apenas imaginar o som da água.
4 - INT. SALA - DIA
Uma mesa de madeira. Sobre ela, um jogo americano. Sobre ele, um prato branco com presunto. Fatias finas organizadas como uma estrela. Frente a mesa, uma cadeira de madeira com costas altas. Uma artista de 40 anos está sentada nessa cadeira. Usa um vestido comprido abotoado. O cabelo arranjado, puxado para a nuca, mostrando o rosto. Os olhos fixos no prato de presunto.
ARTISTA
A artista lava as mãos e senta à mesa posta.
Toma do presunto sem cerimônia.
A artista avança a mão, pega o presunto e começa a comer, lentamente, delicada. Os seus olhos variam entre o prato e a câmera (o espectador).
ARTISTA
Pega o presunto como o lábio de um homem desejado.
Os dedos apalpam e a língua escala a gordura do presunto que é
a carne lhe pertencendo, nova e boa virando sua.
A artista lavou as mãos.
A artista lava as mãos novamente na gordura do presunto.
Olha os que comem com uma distância febril.
A artista não come: possui.
A artista come o presunto num movimento sem tempo, sem finitude. Corte a meio de um gesto.
5 - INT. BANHEIRO - DIA
Uma pia redonda e branca com torneira de ferro banhada por luz difusa. A água corre da torneira para o ralo escancarado. O som corresponde: a água bate na boca da pia, no ralo, segue cano abaixo.
6 - INT. SALA - DIA
Uma mesa de madeira. Sobre ela, um jogo americano. Sobre ele, um prato branco com presunto. Fatias finas organizadas como uma estrela. Frente a mesa, uma cadeira de madeira com costas altas. Uma artista de 40 anos está sentada nessa cadeira. Usa um vestido comprido abotoado. O cabelo arranjado, puxado para a nuca, mostrando o rosto. Os olhos fixos no prato de presunto. O seu olhar mudou. Parece febril. As palavras surgem carregadas de um peso que não tinham.
ARTISTA
A artista lava as mãos e senta à mesa posta.
Toma do presunto sem cerimônia.
A artista debruça-se sobre o prato, avança as duas mãos, pega o presunto desajeitadamente, e curvada enfia uma fatia na boca. É um gesto selvagem, visceral, coisa pouco humana. Os seus olhos concentrados no prato, no presunto, nas mãos gordurosas. Alisa o presunto, estica-o, passa-o no rosto, lambe-o. As palavras, ditas enquanto mastiga, perdem a clareza, ficam misturadas.
ARTISTA
Pega o presunto como o lábio de um homem desejado.
Os dedos apalpam e a língua escala a gordura do presunto que é
a carne lhe pertencendo, nova e boa virando sua.
A artista lavou as mãos.
A artista lava as mãos novamente na gordura do presunto.
Olha os que comem com uma distância febril.
O presunto termina. A artista tem as bochechas, o queixo e as mãos reluzentes de gordura. O cabelo ainda alinhado mas alguns fios caem sobre o rosto. A artista levanta a cabeça, deixa cair as costas sobre a cadeira, olha para a câmera. Depois de um tempo, decide falar.
ARTISTA
A artista não come: possui.
Não engole: se imiscui na textura vital.
A artista pega o prato, levanta-o frente ao rosto, lambe a sua superfície.
7 - INT. ESCADARIA - DIA
Uma escadaria de dois lances, com degraus e corrimão de madeira pesada e escura. A luz do dia difusa e baixa, sem sombras. É isso, uma escada silenciosa sob luz esmaecida.
8 - INT. QUARTO - FIM DE DIA
O quarto é iluminado pela luz exterior, uma luz baixa de final de dia. A cama está feita, com os lençóis bem esticados, a manta lisa. Sobre a cama, ao centro, um frasco de vitaminas e uma bula aberta, esticada. Atrás da cama, uma porta aberta. Na moldura da porta, a artista de pé. Uma silhueta na fraca claridade. Está cansada, respira com dificuldade (ficou assim depois de subir as escadas). A mão na moldura de madeira parece sustentar o corpo. Os olhos fixos no frasco de vitaminas, na bula.
9 - INT. ESCADARIA - DIA/NOITE
Uma escadaria de dois lances, com degraus e corrimão de madeira pesada e escura. A luz do dia difusa e baixa, sem sombras. Ouve-se passos lentos subindo a escada, degrau a degrau, num movimento muito lento. É apenas o som dos sapatos pressionando a madeira velha que range. A luz do dia cada vez mais fraca. A noite chega (é uma transição relativamente demorada). Os passos sonoros atingem o fim da escada. A escada na noite silenciosa e estática.
10 - INT. QUARTO - NOITE
O quarto é iluminado por luz elétrica amarela, misturada com uma azulada e fraca luz natural que chega da rua. A porta aberta. A cama está feita, com os lençóis bem esticados, a manta lisa. A artista sentada na cama, com as mãos no colo, enfrenta a câmera. Parece esperar um sinal. Ao seu lado, uma caixa de medicamento. A artista pega a caixa, abre-a pelo topo, com delicadeza. Retira um frasco de vitaminas e uma bula. Desdobra a bula, alisa-a sobre o colo. Levanta a cabeça, enfrenta a câmera, os olhos fixos, nenhuma intenção.
ARTISTA
Já tarde a artista abre uma bula de vitaminas.
Na bula indicações, precauções, apresentações nunca vistas.
Na bula cápsulas contêm um fator intrínseco e potência estabelecida.
A bula atrai a artista, a febre e fome noturna.
Anemias megaloblásticas da gravidez. A artista se pergunta em que formas caberiam anemias megaloblásticas da gravidez.
Toma casos rebeldes e estados de carência: a gravidez da artista?
A artista baixa os olhos, vê a bula.
ARTISTA
Os produtos têm números e vêm de Nova York:
mas antes de constatar as fontes a artista volta ao seu instrumento.
A artista abandona o frasco no regaço do vestido, levanta a bula esticada (tapando o rosto). Lê a bula sem fazer ruído. Depois comenta.
ARTISTA
A bula atrai como relíquia de frascos, sinais de intolerância
E perturbações hipocrômicas.
A artista e a bula.
A artista tem um certo senso de humor e lê, relê curiosidades,subtrai formas imprecisas.
A artista pousa a bula e o frasco de vitaminas sobre a cama. Levanta-se, desaparece para dentro do quarto. Fica a cama e a porta aberta. A artista volta com uma cesta repleta de bulas desembrulhadas. Vira a cesta sobre a cama. As bulas caem sobre a manta, sobre o lençol, no chão.
11 - INT. SALA - NOITE
Um salão amplo, luminoso. As paredes brancas. O chão de madeira escura. Fixas na parede, duas folhas de papel retangulares, cada uma com um metro de largura e dois de altura. São bulas, ampliadas, enormizadas. Na primeira folha lê-se em letras garrafais: Num estudo matricial a eficácia de olmesartana medoxomila (OM/HCT) associada à hidroclorotiazida foi avaliada em 502 pacientes com hipertensão (PA diastólica casual média entre 100 e 115 mm Hg). Foram utilizadas as doses OM/HCT respetivamente de 20 mg ou 40 mg e/ou 12,5 mg ou 25 mg e placebo. As reduções observadas na PA diastólica foi de -8,2mm Hg no placebo, -16,4mm Hg na dose de 20/12,5 mg, -17,3mm Hg na dose de 40/12,5 mg e de -21,9mm Hg na dose máxima de 40/25 mg. Uma cadeira de madeira perante a primeira folha. A artista chega com um violoncelo numa mão, o arco na outra. Senta-se na cadeira. Ajeita o violoncelo, levanta o arco. Olha para a folha. Vê no texto copiado da bula uma partitura musical. Toca, improvisando. A artista para de tocar. Levanta-se. Pega a cadeira, o violoncelo e o arco, instala-se perante a segunda folha. Os mesmos movimentos. Ajeita o violoncelo, levanta o arco. Na segunda folha lê-se: Reação muito comum: diarreia, náusea, astenia, dor de cabeça, insônia (incluindo despertar cedo, insônia inicial, insônia de manutenção do sono). Reação comum: palpitações, visão turva, boca seca, dispepsia, vômitos, calafrios, tremor, anorexia, distúrbio de atenção, vertigem, letargia, hipersonia, sonhos anormais, polaciúria, sangramento, disfunção erétil, hiperidrose, fogachos. A artista vê no texto da bula uma partitura musical. Toca, improvisando. Para de tocar. Levanta-se. Pega a cadeira, o violoncelo e o arco, e instala-se na lateral, virada para uma parede que não vemos. Lê o texto perante si como uma partitura musical. Toca, improvisando. Para de tocar. Levanta-se. Pega a cadeira, o violoncelo e o arco, e instala-se em frente a câmera. O vestido é decotado, com alças. O cabelo está solto, desgrenhado. A artista lê o texto (colocado atrás da câmara) como uma partitura musical. Toca, improvisando. Para de tocar. A artista pega a cadeira, o violoncelo e o arco e sai de campo. Fica a sala com as duas folhas penduradas. Ouve-se a artista a sentar, a preparar o violoncelo, a tocar. Ouve-se, não se vê.