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Artista não come 

Miguel Seabra

Ao ler Poética (Companhia das Letras, 2013) de Ana Cristina César, deparei-me com o poema Criação. Além de um poderoso manifesto sobre a relação da artista com a materialidade – obsessão, angústia, dependência, desespero – fui tomado pela sua possibilidade visual. Um texto para ser dito, para ser visto. O roteiro foi escrito declaradamente para ser interpretado/incorporado pela performer e violoncelista Mariana Carneiro da Cunha. Atualmente, o projeto busca financiamento para a produção do filme e obtenção de direitos autorais. 

Miguel Seabra Lopes (Lisboa, 1975) escreve roteiros e dirige filmes desde 1998. Desde 2011, dirige, escreve e monta em parceria com Karen Akerman. Realizou, entre outros, os filmes Confidente (exp, 2016, 12'); Talvez deserto talvez universo (doc, 2015, 99'); Outubro acabou (fic/doc/exp, 2015, 24'); Incêndio (fic, 2011, 23’); Alasca (fic, 

2009, 21') e Perímetro (fic, 2006, 24’).

1 - INT. BANHEIRO - DIA

Uma  pia  redonda  e  branca  com  torneira  de  ferro  banhada  por  luz difusa.  Estaticidade.  Ouve-se  água  a  correr sobre mãos que se esfregam uma na outra. O som como memória ativa do ato.

2 - INT. SALA - DIA

Uma mesa de madeira. Sobre ela, um jogo americano. Sobre ele, um prato branco com presunto. Fatias finas organizadas como uma estrela. Frente a mesa, uma cadeira de madeira com costas altas. De pé, com as mãos fechadas sobre  as costas da cadeira,  uma artista de 40 anos.  Usa um vestido comprido abotoado. O cabelo arranjado, puxado para a nuca, mostrando o rosto. Os olhos fixos no prato de presunto.  

3 - INT. BANHEIRO - DIA

Uma pia redonda e branca com torneira de ferro banhada por luz difusa. A água corre da torneira para o ralo escancarado. O silêncio permite apenas imaginar o som da água.

4 - INT. SALA - DIA

Uma mesa de madeira. Sobre ela, um jogo americano. Sobre ele, um prato branco com presunto. Fatias finas organizadas como uma estrela.  Frente a mesa,  uma cadeira de madeira com costas altas. Uma artista de 40 anos está sentada nessa cadeira. Usa um vestido comprido  abotoado. O cabelo arranjado, puxado para a nuca, mostrando o rosto. Os olhos fixos no prato de presunto.

 

ARTISTA

A artista lava as mãos e senta à mesa posta.  

Toma do presunto sem cerimônia.

 

A artista avança a mão, pega o presunto e começa a comer, lentamente, delicada. Os seus olhos variam entre o prato e a câmera (o espectador).

 

ARTISTA

Pega o presunto como o lábio de um homem desejado.  

Os dedos apalpam e a língua escala a gordura do presunto que é 

a carne lhe pertencendo, nova e boa virando sua.  

A artista lavou as mãos.  

A artista lava as mãos novamente na gordura do presunto.

Olha os que comem com uma distância febril.  

A artista não come: possui.

 

A artista come o presunto num movimento sem tempo, sem finitude. Corte a meio de um gesto.

5 - INT. BANHEIRO - DIA

Uma pia redonda e branca com torneira de ferro banhada por luz difusa. A água corre da torneira para o ralo escancarado. O som corresponde: a água bate na boca da pia, no ralo, segue cano abaixo.

6 - INT. SALA - DIA

 

Uma mesa de madeira. Sobre ela, um jogo americano. Sobre ele, um prato branco com presunto. Fatias finas organizadas como uma estrela.  Frente a mesa,  uma cadeira de madeira com costas altas.  Uma artista de 40 anos está sentada nessa cadeira. Usa um vestido comprido abotoado. O cabelo arranjado, puxado para a nuca, mostrando o rosto. Os olhos fixos no prato de presunto. O seu olhar mudou. Parece febril. As palavras surgem carregadas de um peso que não tinham.

 

ARTISTA 

A artista lava as mãos e senta à mesa posta.  

Toma do presunto sem cerimônia.

A artista debruça-se sobre o prato, avança as duas mãos, pega o presunto desajeitadamente, e curvada enfia uma fatia na boca. É um gesto selvagem, visceral, coisa pouco humana. Os seus olhos concentrados no prato, no presunto, nas mãos gordurosas. Alisa o presunto, estica-o, passa-o no rosto, lambe-o. As palavras, ditas enquanto mastiga, perdem a clareza, ficam misturadas.

ARTISTA

Pega o presunto como o lábio de um homem desejado.

Os dedos apalpam e a língua escala a gordura do presunto que é

a carne lhe pertencendo, nova e boa virando sua.

A artista lavou as mãos.

A artista lava as mãos novamente na gordura do presunto.

Olha os que comem com uma distância febril.

O presunto termina. A artista tem  as bochechas, o queixo e as mãos reluzentes  de gordura. O cabelo ainda alinhado  mas alguns fios caem sobre o rosto. A artista levanta a cabeça,  deixa cair as costas sobre a cadeira, olha para a câmera. Depois de um tempo, decide falar.

ARTISTA

A artista não come: possui.

Não engole: se imiscui na textura vital.

A artista pega o prato, levanta-o frente ao rosto, lambe a sua superfície.

7 - INT. ESCADARIA - DIA

Uma escadaria de dois lances, com degraus e corrimão de madeira pesada e escura. A luz do dia difusa e baixa, sem sombras. É isso, uma escada silenciosa sob luz esmaecida.

8 - INT. QUARTO - FIM DE DIA

O quarto é iluminado pela luz exterior, uma luz baixa de final de dia. A cama está feita, com os lençóis bem esticados, a manta lisa. Sobre a cama, ao centro, um frasco de vitaminas e uma bula aberta, esticada. Atrás da cama, uma porta aberta. Na moldura da porta, a artista de pé. Uma silhueta na fraca claridade. Está cansada, respira com  dificuldade  (ficou  assim depois  de subir  as escadas). A mão na moldura  de madeira parece sustentar o corpo. Os olhos fixos no frasco de vitaminas, na bula.

9 - INT. ESCADARIA - DIA/NOITE

Uma escadaria de dois lances, com degraus e corrimão de madeira pesada e escura. A luz do dia difusa e baixa, sem sombras.  Ouve-se  passos lentos subindo  a escada, degrau a degrau, num movimento  muito  lento.  É apenas o som dos sapatos pressionando a madeira velha que range. A luz do dia cada vez mais fraca. A noite chega (é uma transição relativamente demorada).  Os passos sonoros atingem  o fim da escada. A escada na noite silenciosa e estática.

10 - INT. QUARTO - NOITE

O quarto é iluminado  por luz elétrica amarela, misturada com uma azulada e fraca luz natural que chega da rua. A porta aberta. A cama está feita, com os lençóis bem esticados, a manta lisa. A artista sentada na cama, com as mãos no colo, enfrenta a câmera. Parece esperar um sinal. Ao seu lado, uma caixa de medicamento. A artista pega a caixa, abre-a pelo topo, com delicadeza. Retira um frasco de vitaminas e uma bula. Desdobra a bula, alisa-a sobre o colo. Levanta a cabeça, enfrenta a câmera, os olhos fixos, nenhuma intenção.

ARTISTA

Já tarde a artista abre uma bula de vitaminas.

Na bula indicações, precauções, apresentações nunca vistas.

Na bula cápsulas contêm um fator intrínseco e potência estabelecida.    

A bula atrai a artista, a febre e fome noturna.

Anemias megaloblásticas  da gravidez. A artista se pergunta em que formas caberiam anemias megaloblásticas da gravidez. 

Toma casos rebeldes e estados de carência: a gravidez da artista?

A artista baixa os olhos, vê a bula.

ARTISTA

Os produtos têm números e vêm de Nova York:

mas antes de constatar as fontes a artista volta ao seu instrumento.

A artista abandona  o frasco no regaço do vestido, levanta a bula esticada (tapando o rosto). Lê a bula sem fazer ruído. Depois comenta.

ARTISTA

A bula atrai como relíquia de frascos, sinais de intolerância

E perturbações hipocrômicas.

A artista e a bula.

A artista tem um certo senso de humor e lê, relê curiosidades,subtrai formas imprecisas.

A artista pousa a bula e o frasco de vitaminas sobre a cama. Levanta-se, desaparece para dentro do quarto. Fica a cama e a porta aberta. A artista volta com uma cesta repleta de bulas desembrulhadas. Vira a cesta sobre a cama. As bulas caem sobre a manta, sobre o lençol, no chão.

11 - INT. SALA - NOITE

Um salão amplo, luminoso. As paredes brancas. O chão de madeira escura. Fixas na parede, duas folhas de papel retangulares, cada uma com um metro de largura e dois de altura. São bulas, ampliadas, enormizadas. Na primeira folha  lê-se em letras garrafais: Num  estudo   matricial  a  eficácia   de  olmesartana  medoxomila (OM/HCT)  associada  à hidroclorotiazida  foi avaliada  em  502  pacientes  com  hipertensão (PA diastólica  casual média  entre  100  e  115  mm  Hg).  Foram  utilizadas  as  doses  OM/HCT  respetivamente  de  20  mg  ou  40  mg  e/ou 12,5 mg ou 25 mg e placebo. As reduções observadas na PA diastólica  foi de -8,2mm Hg no placebo, -16,4mm Hg na dose  de 20/12,5 mg, -17,3mm  Hg na dose  de 40/12,5 mg  e de -21,9mm  Hg na dose  máxima de 40/25 mg. Uma cadeira de madeira perante a primeira folha. A artista chega com um violoncelo numa mão, o arco na outra. Senta-se na cadeira. Ajeita o violoncelo, levanta o arco. Olha para a folha. Vê no texto copiado da bula uma partitura musical. Toca, improvisando. A artista para de tocar. Levanta-se. Pega a cadeira, o violoncelo e o arco, instala-se perante  a segunda  folha. Os mesmos movimentos.  Ajeita o violoncelo,  levanta o arco. Na segunda folha  lê-se:  Reação   muito  comum:   diarreia,  náusea,   astenia,   dor  de  cabeça,  insônia  (incluindo despertar cedo, insônia inicial, insônia de manutenção do sono). Reação comum: palpitações, visão turva, boca seca,  dispepsia,  vômitos,  calafrios,  tremor,  anorexia,  distúrbio  de  atenção,  vertigem,  letargia,  hipersonia, sonhos  anormais,  polaciúria, sangramento, disfunção  erétil, hiperidrose, fogachos. A artista vê no texto da bula uma partitura musical. Toca, improvisando. Para de tocar. Levanta-se. Pega a cadeira, o violoncelo e o arco, e instala-se na lateral, virada para uma parede que não vemos. Lê o texto perante si como uma partitura musical. Toca, improvisando. Para de tocar. Levanta-se. Pega a cadeira, o violoncelo e o arco, e instala-se em frente a câmera. O vestido é decotado, com alças. O cabelo está solto, desgrenhado. A artista lê o texto (colocado atrás da câmara) como  uma  partitura musical.  Toca, improvisando.  Para de tocar.  A artista pega  a cadeira,  o violoncelo e o arco e sai de campo. Fica a sala com as duas folhas penduradas. Ouve-se  a artista a sentar, a preparar o violoncelo, a tocar. Ouve-se, não se vê.

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