DELÉVEIS
(PARTE 1)
Bruno Feldman

A Torre
1
A torre cerrada,
tal qual um rochedo pejado,
carrega uma infante em conserva.
Capuz que lhe vela,
presilha no pulso,
garrote agarrado à cintura.
2
Frequenta-lhe um vulto disforme.
Por trás do capelo
a criança divisa uma espécie abstrata.
Agudo miasma lhe invade o ouvido
o suor desembesta em vazante profusa
e a felpa rasteira se crispa antevendo o terror.
Ele aporta:
um odor obscuro.
Casaca polida,
cabeça raspada,
uma tez estufada que masca,
masca,
masca,
masca,
masca.
Ela,
de orelhas em riste,
não pia.
No peito cozinha um furor abissal.
(...)
I. PRESSÁGIO
Pequena/ Pai/ 3 Anciãs
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(Pequena, distante, está solta no vento.
Vagueia, flanando inquieta na brenha diante da casa.)
Pai → Praque’la não’se’apercebesse,
eu vistava da brecha,
velado na sombra,
través, cá de riba’qui dessa janela,
a’miúda’a dançar.
Vadiava no mato tosado lá’embaixo,
lampeira ingual brasa no vento,
sem guia, num rumo e num tempo que era só dela.
Seus grito arrulhado de gozo naquele folguedo
soava’era como que’um fado de agouro ruim.
---
TAQUARAL, 3 ANCIÃS
1 → Aqui!
2 → Bem atada na goela a serpente.
3 → É rugosa.
1 → É Farpada.
2 → Indecente.
3 → Embebida num sebo inda quente.
1 → Olha’qui.
2 → É um falo?
3 → É raiz de cicuta?
1 → É um trecho de corda.
2 → Fiado,
3 → Estendido
1 → E cortado.
1, 2 e 3 → É a corda de um enforcado!
1 →Era um bicho marrento, de vista apoucada e rochedo no peito.
2 → Restava contudo pra’quela couraça um porém: era quando se via diante da filha.
3 → Vergava o joelho, roçava-lhe as mãos e curvado jazia por longas marés.
1 → Compunha orações declaradas a ela.
2 → Adornava-lhe o corpo com dálias quando ela dormia.
1 → Certa feita a menina, em um dia enquanto ele sestava,
moscou-se,
magrela como’era,
por entre uma fenda apertada do muro e raspou-se de casa.
3 → Saiu desprumada pra além das fronteiras do’Manso a chutar os calhaus
e cantar sem pudor o que bem lhe soasse.
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II. AÇUDE
Pequena/ Homem/ Pai
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Pequena (canta) →
Eu nanica,
a roupinha engomada de mãe,
o cabelo meiado em dois gomo na risca do pente.
Cheirosa de banho,
ansiava,
os oínho vidrado,
cô peito elegante
e coluna aprumada,
na beira do açude.
Nevoeiro tardava mas vinha.
Era nele que’u vinha morrer.
Em seu vulto,
seu corpo,
imergir
e desaparecer.
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Homem → Ribanceira da veia.
Onde os bicho das água sossega.
Cerração nuviava’a visão,
de cobri’nté as mão bem adiante dosói.
Tateava eu nas rocha a’pescar.
Achegô-se turvada,
– acendeu-se num facho –
Agitada num fogo de sarça no meio da bruma,
ela veio num zais.
Suadinha di sebo,
esquivada do pai, vaguear na barrage.
Vestidim’ismaecido,
as trancinha encrespada, apinhada de rama e de pó.
A miúda conhece lampreia?
Atenta, óia’qui no balaio. Tá vendo?
Pequena → Tem boca ela não?
Homem → Esse beiço roliço aqui’só.
Pequena → ...
Homem → Senta’mão riba d’ela praver.
Pequena → Se bole todinha. Sei não...
Homem →Tem asco é?
Pequena → Vergonha.
Homem →Que’asneira, miúda.
Pequena → Vai’que’la mi rasga.
Homem → É lampreia das’mansa!
Pequena →Esse muco...
Homem → Dá cá tua mão!
Pequena → O’meu pai deixa não.
Homem →Os’oinho apoucado de nojo e paúra
Eu garrei seus bracinho sem dó.
(Ela grita – luz cai)
(ALVOROÇO – UM BERREIRO SOFRIDO SE ALASTRA NO ESCURO POR LONGO PERÍODO)
(Penumbra crescente. A vista do quadro gradualmente retorna – obnubilada pela neblina)
Homem → Nevoeiro espessava inda mais.
Ela serpenteô-se
arriô meu balaio e raspô-se dali.
A lampreia tremia no chão.
Um chorico domado afogado no vento - não longe.
Cerração engrossava inda mais.
A lampreia zurrava sem ar.
A menina arrulhava chocada nas pedra.
Farejei seus fluído e a fui reavê.
A neblina encorpava inda mais.
A lampreia espumava de dor.
O soluço cessou-se no então.
Rodiado de bruma,
os gotejo eu segui pelo sulco dos vão.
Topei a diacha minguada nas rocha do açude roendo as falange.
Acheguei num rasante e panhei o seu pelo.
Um chumaço graúdo eu carpi do seu côro.
O’seus’óio crescero nimim.
Fedelha quarou-se de veia saltada.
Homem → Deixa eu vê os ferimento, miúda.
O vestido alagado de sumo.
Jugulei o seu colo de manso,
esfreguei meu focinho na coxa,
era um sangue cheiroso de moça.
Se aquieta guria!
Lampreia faz medo mais não.
Espumô inté morrê.
Acabô-se inda agora nas cava do chão.
Pequena → Nevoeiro inda bruto, ele veio.
O seu vulto velado e sem face.
Achegô-se sem rito,
agarrô-me nas anca,
arrastô-me pras beira de lá.
Amoldô um travesseiro de rama pra eu me deitar.
Foi banhando meu sangue
lavando-me as parte,
o vestido e as mão.
Aguacero escarlate escorria de mim.
Assim se’assucedeu.
Nevoeiro solveu,
horizonte alargô,
zul’celeste ligero se abriu.
Enganchei na zonzera,
um negrume nos óio,
moleci da cabeça inté’os’pé.
Apaguei.
Assim foi,
e’eu desapareci.
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Homem → Um ruído de mato pisado achegava de longe.
Quem vem !?
eu de fuça encardida,
aquietei o meu torso.
Amurei o seu corpo num tufo de limo
e vedei sua boca com’as mão.
– a tormenta aqui dentro
e no fora um rochedo –
eu ardia ansiando que a marcha dos passo do mato raspasse vazado,
mas não.
Pelo trote afobado esse cujo rumava severo
– guiado por água que mana –
prumando a cabeça direto pra veia do açude.
Pai (de longe) → Miúúúda !!!
Homem → Vento sopra silvando da brenha,
como quem anuncia o que é que vai ser.
Apanhei sua’carcaça nos ombro.
Bafejava inda quente a pequena, afrouxada,
um grunhido confuso de febre.
Do capão passo vinha apressado.
Pai (de longe) → Miúúúda !!!
Homem → Danação agitô meus’miôlo.
zamboada aqui nos pensamento
animal acuado no muro.
AJEITEI A CRIANÇA NO LEITO DAS ÁGUA’A’BOIAR.
ELA FOI SEM SABÊ.
CORRENTEZA A LEVÔ LÁ’PRO’ALÉM INTÉ AS VISTA PERDÊ.
Eu com’as pata enrubrada,
de um sangue aferrado,
cravado nos laivo da pele.
A paúra ateada nos osso
eu banhava eu banhava eu banhava
mas ele teimava garrado no côro.
Esse cheiro essa mancha sinistra a pureza enterrô-se no açude
essas mão nunca vão mais’sê limpa’otraveiz.
Pai → Arribei no sopé.
Corpanzil de matuto assombrô-se.
O focinho encardido no sumo de gente.
Espinhô-se todinho ao me vê.
Homem → Me’acercou num rodeio de bicho enraivado.
Pai → Donde é isso aí ?!
Donde é que’la tá ?!
O que foi co’cê’feiz ?!
Miúúúdaaaa !!!
Homem → Mundo desnuviô
Céu com sangue lavô
Foice foi quem limpou
Mundo desnuviô
Céu com sangue lavô
Foice foi quem limpou
Pai → Ciciou desnorteado,
as palavra sem prumo
um gaguejo arrastado.
Homem → Atinô pro chumaço dos pêlo miúdo
montoado adiante dos pé.
Agachô-se e panhô pra fungar.
Pai → Foi a gota !
O pescoço enervô-se
e lasquei-lhe a traqueia.
Um arroto dos feito eu desato a goela, demônio!
Mas nada.
O cão-ruim caturrava moído.
Eu te capo cás unha seu pulha !
A pequena, diacho!
Homem → Eu relei nela não!
Pai → A navalha encosto-se n’orelha do praga.
Os dois óio virado,
curvô-se atontado
um cagaço de rês.
Intestino borrô-se num golfo meloso,
e’um fedor alastrô-se no ar.
Desarrolha velhaco!
Mas nada.
Eu picoto ocê’tudo satã!
Homem → Querela por nada, sujeito!
É sandice
Bestage
Histeria.
Isso é sangue de peixe!
Esse cujo é um outro!
A neblina era rude e’vistei nada não!
Eu rachado
amolece
me afrouxa?!
Pai → Garrotiei sua fuça inda mais.
O diacho tussia empalado cum sangue nas venta.
É penuge de moça !
Homem → Era noite caída e nós dois galfinhado.
É pelage de bicho !
Pai → E chutava o seu baço.
Homem → Me trinchou com’a faca no seio da cara, o caveira.
Seis talhada adiante no lombo e meus zóio volvero pro céu.
Eu prostrado
a pujança vexada
de pança estripada
os miúdo, os recheio espalhado, lavrado no lodo.
Abrandô-se o agito no peito.
Tremulei,
trebuchei’nté o fel do meu figo buli,
rodeei
e’moleci de tombá cos meus osso no chão.
Pai → Amansô-se cos’oio vidrado no além.

Homem → A neblina otra veiz se’aventô.
Assoprô-se num vento calado.
Um silêncio esquisito na brenha.
Pequena (canta > etérea/ distante) →
Eu nanica,
a roupinha engomada de mãe,
o cabelo meiado em dois gomo na risca do pente.
Cheirosa de banho,
ansiava,
os oínho vidrado,
cô peito elegante
e coluna aprumada,
na beira do açude.
Nevoeiro tardava mas vinha.
Era nele que’u vinha morrer.
Em seu vulto.
seu corpo,
imergir
e desaparecer.
Pai → Um zunido ligeiro soprô-se nimim.
Um cochicho abafado no’uvido.
Era ela.
Eu sustei num repente.
Amornei minha sanha pra ver.
Dessa veiz lá de longe,
arrulhando uma trova no bafo da brisa.
A doçura vazava na voiz.
Era ela.
Repiei da moringa’inté’os’pé.
Vinha lá de’adiante nos rumo do açude.
Desabei quele traste no chão e zarpei sem olhar.
Trespassei quelas’água no breu
e desapareci.
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III. INTERLÚDIO
Lampreia/ Cerração / Açude > cantam
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Lampreia → Eu,
a Lampreia do açude,
resíduo de peixe ancestral.
Eu,
caçada no leito suave,
que agora esturrico no antro do chão.
Eu,
que fui água e sou terra,
festim de formiga,
e sobejo de cão,
testemunho
de vista ofuscada
o que aqui sucedeu.
Cerração → Eu,
a Neblina que tudo esvanece,
eu que velo sem trégua a visão.
Observo insuspeita
alastrando os meus olhos no ar,
testemunho por todo lugar
o que deu-se no então.
Açude → Eu,
era’çude, o meu leito ilibado,
lavei todo sangue que ’a margem rendeu.
Minha água verteu-se assassina
eu levei a menina,
o seu corpo ascendeu.
◼
IV. REPASTO
Homem
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Homem → Aqui.
Aqui.
Luz daninha ateada na fresta do olho.
Eu largado na penha,
apinhado de chaga inda fresca,
aspirei a saliva corrida no largo dos beiço,
inda aceso lá dentro,
e me vi.
Meus nervo sem viço,
finado mas vivo,
cos braço crispado,
de perna entrevada,
o meu colo empedrado,
acordei.
Comboio de praga saúva
avançava no cancro, ceifando-me as tripa.
Um abutre na ponta da pata
afiando o seu bico na pedra.
A primeira ferroada no queixo.
Uma risca laivada no braço.
Arriscô-se carpindo uma unha da mão.
Mais um outro do bando achegô-me no repasto.
Essas quina de osso o diacho moeu.
Assistia,
eu tolhido qual rocha,
o meu corpo-carniça servido
foiçado em pedaço
rasgado sem rinha
papança de besta pra tudo’que’é lado.
Sem rusga, nem luta, nem faca,
assisti.
Era couro, era sebo, era sumo
tendão, cartilage, rasgado no gume sem dó.
A bicada certeira de um outro e meu peito se abriu.
CORAÇÃO INDA QUENTE BROTOU.
VERTIA-ME A SEIVA NUM JORRO BRUTAL.
OS BILTRES SORVIAM A FONTE
GRASNANDO NUM GOZO ENERVADO
E BANHADO DE AMOR.
Eu minei’nté secá,
fui jazendo pra choça do cão.
Assim foi,
pra não mais,
e’eu desapareci.
◼
V. SOPRO
3 Anciãs
Pequena/ Mulher
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TAQUARAL
3 ANCIÃS (CANTAM)
1, 2 e 3 →
Assentada no curso das’água,
a torrente a miúda levou.
Acamada em seu leito,
a mortalha de areia a cobriu,
correnteza perene a’arrastou
e seu corpo inda morno engoliu.
Tez macia lesada na pedra,
o seu crânio se danificou.
Deformou-se no cume dum’seixo,
a memória a pancada extirpou.
Esfolou toda recordação,
dizimou-lhe’a lembrança mais fina,
distorceu cada linha da mão.
--
(Declive remoto no rumo do rio)
Mulher → Te arvora cachopa! Recua, te anima!
Alumia essa vista que tu inda é moça!
Apertava o seu dorso enquanto’ela cuspia.
Uma renca de lodo vazava.
Estilhaço de mato,
aguaceiro castanho das venta.
Amoldei o seu corpo miúdo pegado no meu.
respirei..
respirei..
respirei como se’esse meu peito acendesse pro seu.
Até’que’la abrolhou.
Lá do imo um batuque saiu,
irmanamos o pulso
eu e ela
ela e eu.
Seus oínho acenderam nos meu,
penduramos o tempo
enredamos o laço e pairamos ali.
Num silêncio de mãe quando vista o que é seu.
Ela então se’abrasou e largou-se num berro disforme jorrado sem jeito ou palavra;
- Grunhido golfado de susto,
espalhô-se de dar revoada no mato. –
Pequena → .....................
Mulher → Deondé c’tu vem miudinha?
Pasmô-se em meu vulto.
Ingual áum rebento raiado no agora’gorinha,
abismô-se atentando pra tudo’que via de primeira vez.
Armou sua mão e buliu no meu pelo,
rodeou minhas ruga,
o desenho do rosto,
da vala dos’óio
até vir dar co’a ponta dos dedo na borda dos beiço.
Pequena → O que é’qué você ?
Mulher → Eu sou uma mulher, miudinha.
Despregô-se de mim e’achegô-se co’a fuça diante da pôça.
Lá fitô seu retrato na’água
ingual bicho cismado no espelho.
Pequena → O que é?
Mulher → Ariscô-se ao roçar n’água fria e ver sua figura do avesso.
Disforme.
Enfeada.
Apanhei no seu punho com jeito.
Ela veio comigo.
Aninhô-se na minha cintura.
Desatamos o passo.
E sem pressa cruzamos o charco pra longe do rio.
◼
V. MORRER
Pequena/ Mulher
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Mulher → Nós duas na choça.
Instalei-a no trecho mais quente, vizinha do fogo.
Roía uma broa,
vidrada no rumo dum verme na cava da lenha.
Pequena → E que nome isso tem?
Mulher → É a praga, menina.
Pequena → Praaaa - ga.
Praga.
Mulher → Dá no fruto e no corpo.
Pequena → Aqui dentro ?
Mulher → Rói a gente do meio pras ponta,
aqui dentro quand’a gente morre.
Pequena → Eu me lembro de quando eu morria.
Mulher → Como’é miudinha!?
Pequena → Era coisa tão...,
não como esse...
Mulher → Fogo?
Pequena → NãoNão era esse fogo. Era como essa praga.
Mulher → Branca...?
Pequena → Era branca.
Era branca, era fria, era imensa.
Mulher → E tem nome pra isso?
Pequena → Era um nada, mãe-bá.
Nevoeiro tardava mas vinha.
Era nele que’u vinha morrer.
Em seu vulto,
seu corpo,
imergir
e desaparecer.
◼
VII. FOGO
3 Anciãs
Pequena/ Sombra
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TAQUARAL
3 ANCIÃS
1 → Fez-se ocaso
e do dia tomaram a luz.
2 → Na noite arrancaram a rocha.
2 → Com rocha amolaram cutelo.
3 → Cutelo a vazar o suíno.
2 → Suíno uma dose de banha.
3 → Da banha uma cuia de sebo.
1 → Do sebo: uma vela.
2 → Com vela domaram a flama.
3 → Da flama se fez outra luz.
1 → Com a luz
veio a sombra.
1 , 2 e 3 (cantam)→ Entre o lusco e o fusco
na noite chuvosa
evadiu-se do’abrigo
uma sombra trevosa.
Entre o são e o cão
de’uma moça ansiosa
evadiu-se d’umbigo
uma sombra nervosa.
--
Pequena → Uma vela. Veee la.
Uma vela’alumia essa casa.
Uma chama, eu parada, mãezinha dormindo.
Uma coisa se agita na taaa...tai...taipa. Taipa.
Fogo aquece. Eu sentada.
Essa coisa não para.
Ela dança. É só isso. Ela dança.
Não fala, não olha, não sabe de nada. O que é?
Sombra (voz) → Miúda-diacha
Lampreia oleosa
Nem casa, nem fogo
Nem muro, nem cinta
segura a’tua gana por mundo e por nome.
Pequena → O que é ?!
Sombra (voz) → Te’achega’qui perto!
Pequena → Nu’arredo!
Sombra (voz) → Me olhe!
Pequena → O que é?!
Sombra (voz) → Ouve bem oque’u vou te dizer.
Pequena → O que é que é você?
Sombra (voz) → Uma sombra.
Aqui jaz o teu pai.
Pequena → Tenho pai ?!
Sombra (voz) → O que era o teu pai.
Pequena → Sai pra longe ou te queimo.
(ela empunha a vela)
Sombra (voz) → SOU TRAÇO, MEMÓRIA, ESTILHAÇO DO PAI.
FADADO A VAGAR PELA NOITE,
E NO DIA A PENAR PELA FLAMA QUE ARDE.
PRA’QUE’O’ERRO DE TUDO QUE FIZ CA NA TERRA NO TEMPO MORTAL
SEJA, NO FOGO, LAVADO,
PURGADO E QUEIMADO
ATÉ QU’EU ME DESATE DA FORCA DO MUNDO
E TRESPASSE DE VEZ ESSE UMBRAL.
(Ela grita, fogo em riste, apunhala a sombra com a vela)
(Um incêndio se alastra na choça)
◼
VIII. MORADA
Pequena
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Pequena → A choça esturrica já longe.
Eu tusso na brenha.
Fumaça das preta.
Mãezinha queimava lá dentro.
Abri’os’óio’e’num’era mais tempo.
Manei pela noite bulida co’a’voz da’visão.
Vaguei pelo acaso e sem prumo por dias a fio.
Fui dar numa casa.
Era imensa e murada.
Mosquei o meu resto de corpo pro’imo dum racho espremido.
Por dentro um terrêro tomado de mato.
A lavôra empestada.
Vistei uma’larga ventana.
Vidraça vestida por sebo no alto e no centro e de tudo.
A’figura dum’vulto pasmado me via.
Eu’berrei cum fiapo de viço
pra ver se’le vinha’acudir.
Nenhum cisco’o’tinhoso mexeu.
Me’arrastei’nté’a cancela
– o zinabre encrustado no fecho –
vigorei por instante,
forcei o ferrolho,
a porteira cedeu.
Tapei meus’dois’olho co’as mão e fitei meu escuro lá dentro.
Ar faltô.
Tomei tento outra veiz
e’entrei.
Uma vasta morada.
Arrisquei mais um berro,
mas nada.
Chão coalhado de verme, gemia.
A parede marcada na falta’amarela dum quadro.
Noutra’um’rastro de mão arrastado.
A poeira dum’tempo suspenso estuprô minhas venta.
Marchei adiante na’escada pisando de leve.
Divisei lá de cima’a’janela.
A tranca lacrada no ferro.
Anté o vidro’ele atado no forro,
em um trecho de corda amarrado no alto.
Seu olho parado,
a cadeira tombada,
e mais nada.
Na poça debaixo do morto uma folha riscada:
“O cenho disforme depois da ruína já fora repleto de luz.
Era belo e senhor.
E o tempo entortou sua costa,
E o fez envergar a cabeça,
E tratou de ruir sua pele,
Roer o seu dente,
ensebar seu olhar e cobrir sua vista.
Foi-se o dia em que a casa luzia e’a menina era dona de tudo.
O soalho escorado na viga de tora mais firme já vista naquele lugar.
O quintal era prenhe de tudo que ali se plantava.
Devoto,
esperou por um terço de era diante do racho,
ansiando por ela’outra’vez.
Até quando cerrou-se aqui dentro
curvado
em severa apatia.
Fez-se o dia em que içou-se no forro e deu cabo ali mesmo daquilo.
Pra não ser desdenhoso acenou com pesar para tudo que estava ao redor,
explicou sem dizer uma frase que fosse, que ali não havia mais nada pra ele fazer
e desapareceu.”
Aspirei todo ar que podia e mirei a janela.
Lá do cume se vista o negrume distante, da choça queimada, lavrado no ar.
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CRÉDITO DAS IMAGENS
Imagem 1 (capa): Gerhard Richter
Imagem 2: Lauren Withrow
Imagem 3: Autoria desconhecida
Imagem 4: Autoria desconhecida (encontrada aqui).

Bruno Feldman é ator, formado pela Escola de Arte Dramática (EAD) da USP (2004) e pela Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT) (1999), e dramaturgo, com passagem pelo Núcleo de Dramaturgia da ELT, coordenado por Luís Alberto de Abreu. Tem também formação pela SP – Escola de Teatro (SPET) (2011). Atuou como dramaturgo no “Projeto Espetáculo”, no programa “Fábricas de Cultura”, no qual foram encenados seus textos Desova e Murada, nos anos de 2013 e 2014, respectivamente . Seu texto Nomen foi à cena em espetáculo realizado no SESC Ipiranga pela Cia do Caminho Velho e Cia do Pássaro, em temporada realizada em 2018.