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(Des)ocupar: rexistir

[1]

João Rocha

Chego com o que sempre me escapa pelos dedos, mas que, paradoxalmente, nunca me deixou na mão: a literatura e sua força de decisão. Por tal força, decidi manter esse jogo de palavras que desenha o título desse texto e que o abre para algumas possibilidades, como: ocupar como forma de existência e resistência; desocupar como forma de uma certa reexistência e, também, insistência (esse outro campo da resistência); a possibilidade do neologismo rexistir, trazendo consigo a convivência inseparável destes dois verbos – existir e resistir.  Chego também com a vontade de responder a uma constatação insistente que me persegue já há algum tempo: o corpo é o que nos mantém de pé enquanto tudo o que está a nossa volta parece ruir. Em tempos de ruínas, o que nos mantém vivos é justamente o que não podemos entender por inteiro, o que sempre nos escapa, mas que por isso mesmo apresenta-nos a sensibilidade como uma forma de pensamento. E um dos meios de ter acesso a esse saber é através da palavra poética, pois somente em ponto de poesia pode-se dizer: “eu escrevo com o corpo” (BARROS, 2010, p. 178). Com ele se pode ultrapassar a parede da palavra que carrega a morte das coisas para vibrar com elas, as palavras, em seu osso. E tal movimento leva-nos a uma matéria fina: a vida.

 

Para escrever sobre a vida, encontram-se, no caminho, algumas questões de estilo: por onde começar, se o que se deve tratar não tem começo nem fim? Se a vida se dá pelo meio e esse meio é móvel, como começar sem deixar que as letras se percam de vez? Como dar alguma paragem àquilo que é “tão ligeiro que cairá sem se ver” (LLANSOL, 1993)? Como capturar o que é sempre errante e desenha-se na simplicidade de quatro letras? É preciso realizar um corte para delinear um começo. Um contexto será o corte que abrirá caminho para a vida. Dentre tantos contextos possíveis, escolherei um: a cidade. Mas não uma cidade real, que poderia ser facilmente encontrada nos mapas. Sua existência é sentida pelas vibrações e pulsações das forças virtuais que nela habitam e buscam passagem para afetar os corpos que porventura se encontram aprisionados no sentido estático de realidade. Tal passagem dá-se através da leitura, pois o que servirá de contexto aqui é uma cidade escrita e seu nome é Münster. Não aquela que possui suas fronteiras delimitadas na Alemanha, mas a escrita nas páginas de “Contos do mal errante” (2004), de Maria Gabriela Llansol.

 

No livro de Llansol, encontramo-nos em Münster, uma cidade sitiada. Ao longe, é possível avistar o cerco, espécie de linha que nos lembra, a todo momento, que o mal está à espreita. Nesse lugar, paralisado pelo medo, não há, aparentemente, comunidade, mas um bando que se movimenta anônimo, pois a singularidade, traço precioso de uma vida, fora soterrada pela força de soberania que espreita a cidade. Somos todos ainda mais acuados em Münster, mas uma certeza pode abrandar o coração de quem ali está: a certeza de que o mal é errante e, portanto, passa, ele está sempre a passar.

 

Lendo os “Contos do mal errante” ao lado de “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I” (2010), de Giorgio Agamben, Münster parece se configurar como uma espécie de espaço de exceção e, portanto, aproximar-se-ia dos tempos atuais nos quais, segundo o autor, a figura do campo de concentração – espaço radicalmente de exceção – e não mais a cidade, torna-se o paradigma biopolítico do ocidente (AGAMBEN, 2010, p. 176). Dessa maneira, se concordarmos com Agamben, pode-se conceber Münster como uma alegoria dos tempos em que vivemos, nos quais a biopolítica, com suas tecnologias como a biometria e o sequenciamento de DNA, invade e controla, cada vez mais intensamente, o corpo dos homens, transformando-os, assim, naquilo que o filósofo denominou de homo sacer –  figura do direito romano arcaico que, naquele contexto,  caracterizava-se por ser interditada de morrer por sacrifício, ou seja as honrarias para tal ritual lhe eram proibidas. Porém, um homo sacer podia ser morto por qualquer um, sem que isso se configurasse um crime. Em outras palavras, trata-se de um homem condenado a viver na vida nua – vida que tem como característica, somente, o fato de ser “matável”.

 

Se, para Agamben, o ocidente toma o estado de exceção como regra, somos todos homo sacer, isto é, homens cuja vida vale menos que nada aos olhos do poder soberano e “por toda parte sobre a terra os homens vivem hoje sob o bando de uma lei e de uma tradição que se mantém unicamente como ‘ponto zero’ do seu conteúdo, incluindo-os em uma pura relação de abandono” (AGAMBEN, 2010, p. 57). Não há comunidade possível para aqueles que vivem na vida nua, mas há, como coloca Agamben, lembrando Jean Luc-Nancy, o bando [2].

 

O bando que vaga em Münster seria, se seguirmos os caminhos de Agamben, “os corpos absolutamente matáveis dos súditos que formam o novo corpo político do Ocidente” (AGAMBEN, 2010, p. 122), abandonados pela lei e carregando uma espécie de vida esvaziada de vida, como se tivessem uma lança apontada para o coração e vivessem sob a iminência permanente da destruição. Nessa direção, a aventura do homem é um percurso triste e sem esperança. Porém, a cidade de Münster não se configura como uma alegoria ou metáfora das cidades ditas reais, que circulam com frequência nos livros de história, nos mapas geográficos ou nos diversos suportes da mídia. Ela se apresenta mais como uma abertura, um convite ao perpétuo devir em que se pauta a tarefa do poeta de escrever o homem e sua aventura na terra.

 

Portanto, mesmo se em Münster, cidade sitiada, onde o justo e o injusto são inseparáveis (LLANSOL, 2004, p. 10), encontramos a estrutura do estado de exceção, é possível enxergar, em Llansol, um desvio de percurso em relação a Agamben, marcado pela “afirmação do improvável” (BLANCHOT, 2001, p. 84), isto é, a esperança de que haja alguma saída para o bando que, vivendo sob a vigência de uma lei sem significado, prostra-se, como o camponês kafkiano de “Diante da lei” (KAFKA, 2009), às portas da lei que não lhe diz nada senão o silêncio do abandono. Vagando pela cidade de Münster, como nômades anônimos, mas em outra direção daquela apontada por Agamben, o bando abre os “Contos do mal errante”:

 

[…] o cerco de Münster não tocou o bando. O bando não parecia sensível à guerra, e mesmo sob o ponto de vista material, não houve uma só escoriação, um só ferimento. O caminho desenrolava-se através de cercas e de tapadas abandonadas e os vivos _______ antigo nome de pobre, pernoitavam sozinhos, ou em grupos, nos lugares, ou habitações sem residentes em que sentiam vontade de ficar. Se não fosse por uma inclinação ainda mal conhecida, por que razão escolher um lugar tão próximo do assédio? (LLANSOL, 2004, p. 7)

O bando, portanto, nesse desvio de trajetória, é formado por vivos, sobreviventes. E aqui, quem sobrevive não é um moribundo – um homo saccer – , mas aquele que pode “passar além do Príncipe” (LLANSOL, 2001, p. 100) e a quem restou somente uma coisa, a vida. O sobrevivente traz consigo a densidade de uma restante vida. Llansol o chamou de Pobre e o definiu assim: 

[…] ele é o único que nos permite passar além do Príncipe. Já que tudo o abandonou. Ele é pois o primeiro em que (e não em quem) a faculdade de criação do dentro se poderá exercer plenamente, já que no fora, no espaço social considerado como única realidade, ele é ninguém, uma coisa de nada. Desmunir-se é a regra do abrir (LLANSOL, 2001, p. 100)

O bando, na textualidade Llansol, funcionaria mais como aquilo que abre caminho, a partir de um certo “desocupar-se” – désoeuvrement –, se pensarmos com Blanchot, que, segundo Nancy, é o único suporte para a comunidade: 

A comunidade tem lugar, necessariamente, naquilo que Blanchot nomeou como désoeuvrement. Aquém ou além da obra, é o que se retira dela, o que não tem nada a fazer em relação à produção nem ao acabamento, mas vai ao encontro da interrupção, da fragmentação, da suspensão (NANCY, 2004, p. 78-79, tradução minha). 

 

Desocupar-se é a regra do abrir, pensemos com Llansol e Nancy. Nesse sentido, o bando já encontra alguma possibilidade de se tornar uma comunidade, uma “comunidade desocupada”, quer dizer, não mais ocupada com as questões relativas à produção, a tudo que, em nosso tempo quer assolar a singularidade de uma vida e o que dela é suporte, o corpo. Tal comunidade encontra na interrupção, na fragmentação, na suspensão e na dissolução caminhos para que se constitua sempre em devir – inacabada, mutante, desocupada e inoperante . E não é à toa que a palavra que pode sustentar tal comunidade é, tão somente, a palavra poética – esse corpo-palavra.

Em “Contos do mal errante”, o desvio de trajeto do bando consiste no seguinte: ao invés de ser abandonado a uma forma pura da lei, onde não há distinção entre lei e vida, configurando assim um “estado de exceção”, mira-se na figura do “pobre”, o que já não tem mais nada a perder e, portanto, só lhe resta criar – ex-nihilo. Isso possibilita abrir espaço para que se forme uma certa comunidade desocupada – menos a ver com a reunião de iguais e mais com a reunião daqueles que podem dizer “minha solidão conhece a sua” (GENET, 2000, p. 95) – e que Llansol denominou, ao longo de sua obra, como a comunidade dos absolutamente sós

O que a textualidade Llansol propõe parece estar mais próximo do que Agamben propôs, dezoito anos depois da publicação de “Homo sacer: a soberania do poder e a vida nua I”, em uma palestra em Atenas, em 16 de novembro de 2013, com sua noção de “potência destituinte”. Em um diálogo com Walter Benjamin, Agamben sugere que essa “potência destituinte” trilha o caminho que Benjamin já anunciava em Sobre a crítica do poder como violência: 

A crítica do poder-como-violência é a filosofia da sua história. E é a “filosofia” dessa história porque só a ideia do seu desfecho possibilita o enquadramento crítico, diferenciado e decisivo das suas balizas temporais. Um olhar que se concentre apenas no que está mais próximo aperceber-se-á, quando muito, de uma oscilação dialética nas formas assumidas pelo poder, enquanto instituinte de Direito ou tendente a manter esse Direito. A lei dessa oscilação assenta no fato de todo poder tendente a manter o Direito, no decorrer do tempo, acabar por enfraquecer indiretamente o Direito instituinte do poder nele representado, através da opressão dos poderes contrários e inimigos […]. Essa situação mantém-se até que novos poderes, ou os anteriormente oprimidos, vençam o poder até aí instituinte do Direito, fundando com isso um novo Direito predestinado à decadência. As novas épocas históricas fundamentam-se na ruptura desse ciclo dominado por formas míticas do Direito, na destituição do Direito e dos poderes de que depende (tal como eles dependem dele), enfim, no desmembramento do poder do Estado (BENJAMIN, 2012, p. 81-82).

Para Agamben, o poder constituinte, no qual a sociedade ocidental construiu seus alicerces, “destrói a lei apenas para a recriar sob uma nova forma”, enquanto “o poder destituinte, na medida em que depõe de uma vez por toda lei, pode realmente abrir uma nova época histórica” (AGAMBEN, 2014), como também sugeriu Benjamin. Localizo, na obra llansoliana, essa potência, essa força destituinte que pode abrir uma nova época histórica, na noção de restante vida, pois é ela que guarda “em memória o resto, todos os restos” do que sobreviveu de todas as batalhas travadas ao longo da história para a manutenção do poder e pode assegurar a transmissão das vozes que, de outra maneira, permaneceriam soterradas pela História. E quem pode sustentar com seu corpo a densidade da restante vida só pode ser um sobrevivente já que escolhe “evoluir para pobre”, pois é no exílio, abandonado, desocupado do poder soberano, que se pode encontrar meios para abrir caminhos em um mundo assolado pela força da soberania e, quem sabe, desocupar, destituir espaços ainda soterrados pelo poder, para construir suportes por onde o poema possa passar, dando uma chance para aqueles que por ele são tocados de capturarem o que resta de sua passagem e dar continuidade à perpétua escrita de sua restante vida.

Ainda há outro movimento na narrativa de “Contos do mal errante”. Algo se destaca do bando. Para ser mais preciso três figuras: Isabol, Copérnico e Hadewijch. Enquanto o bando erra, anônimo, pelas vielas da cidade, essas três figuras já não são completamente anônimas, pois possuem um nome. Elas se encontram em uma casa e entregam-se a outro movimento de passagem: o amor ímpar. Esse amor não se baseia nas relações complementares, pois não há, para cada um, um par, visto que são três as figuras envolvidas. O amor ímpar segue a lógica lacaniana de que “não há relação sexual” (LACAN, 1985, p. 49), dado que a complementaridade entre os sexos é impossível, pois a proporção entre um ser e outro nunca é simétrica – entre o ser e outro ser há sempre o outro. Em uma relação amorosa, poder-se-ia dizer que entre um ser e outro há sempre o amor com sua potência de desconstrução, pois, segundo Llansol, o amor ímpar é “a forma de amor que se abre para fora de si mesma” (LLANSOL, 2011, p.50) Nessa direção, o amor também é um mal errante e, como o poema e as tormentas, passa, passa rápido, deixando as marcas da sua destruição. Deixando suas ruínas. Portanto, podemos dizer que, em Münster, está-se sempre na iminência do desastre, ora pelo mal que se desenha nas linhas do cerco e faz que a cidade seja sitiada; ora pelo amor e sua força de destruição. 

O amor traz um deslocamento espacial em “Contos do mal errante” – do descampado das ruas da cidade para o interior de uma casa. Para Agamben, o deslocamento, a abertura de outro lugar, também é marca do estado de exceção. Portanto, a casa e as ruínas de seu interior, escritas pelas palavras de amor, escrever-se-iam, também, em um espaço de exceção? Estaríamos em face de um duplo deslocamento? Se Münster já se encontrava em estado de exceção, por ser uma cidade sitiada em que a lei fora suspensa e seus habitantes foram imersos na vida nua, como corpos matáveis à mercê do desejo do tirano que diz que “tudo é possível”, o que fazer quando se abre um novo espaço, a casa, onde se encerra o amor? Temos, aí, a exceção da exceção? O que pode surgir, então, quando se abre um novo espaço no meio de um espaço de exceção? 

Uma possibilidade de abertura talvez seja o que Llansol chamou de Espaço Edênico, onde resta a vida e, portanto, pode-se fazer comunidade. Ele se apresenta como uma paisagem “desocidentada” [3], pois nem a cidade nem o campo de extermínio servem para estabelecer seus  paradigmas , mas “o pensamento sempre à tona de água” (LLANSOL, 2007) [4] , portanto, sempre em devir. Mas também o amor, com sua potência do aberto, é o alicerce desse novo espaço que serve de refúgio a tal comunidade.

Diferentemente dos métodos pelos quais o ocidente estruturou-se, o Espaço Edênico não concebe o conhecimento como algo estático, pois assim seria impossível abrir caminho para o novo. No “desocidente” que ele abre, o mal passa, pois é errante, sem ficar demasiado tempo. E quem o sustenta é a literatura e sua constante abertura à metamorfose. Nesse espaço, deparamo-nos com os olhos abismados do mal errante, mas sabemos que ali, também, um rosto está à espreita: “o rosto claro e radioso da alegria” (LLANSOL, 2004, p. 255). 

É verdade que o mundo parece caminhar para sua destruição e aqui me refiro a uma gama de evidências que desfila sob olhos um pouco atentos: a substituição de florestas por prédios, plantações ou pastos; a falta de água; a mudança drástica do clima; as desigualdades sociais brutais; a intolerância sexual, religiosa e de outras tantas formas; a indistinção cada vez mais comum entre literatura e mercado editorial; o mercado que tomou conta do pensamento; todas as formas do capital para tentar esconder o desastre iminente; o controle obsceno dos métodos da biopolítica que invadem cada vez mais o corpo dos homens com o argumento da proteção, da segurança; policiais atacando brutamente estudantes dentro da universidade etc. Se tudo isso é verdade, devemos concordar com Agamben e sua sentença de que somos homo sacer e que o estado de exceção virou a regra em nossa contemporaneidade. Entretanto, podemos pensar, com Llansol, que há uma sobre-vida a essa força de destruição característica do poder soberano. Há a literatura e sua força de metamorfose, que pode transformar o homo sacer em um sobrevivente e o resto dessa transformação é a vida, a restante vida. Se o homo sacer não pode narrar sua experiência, pois esta foi destruída pelo controle eficaz do poder, já que no bando soberano toda e qualquer singularidade é estilhaçada, resta ao sobrevivente, aquele que sustenta com o corpo e não com os meios de produção o signo da resistência, contar o mal errante; mesmo sendo a linguagem uma forma de soberania, porque nos obriga a dizer, tal figura – que traz a vida como uma potência – consegue narrar sua experiência. O texto de Llansol nos indica que, para quem não possui mais nada, só há uma saída: criar.

O sobrevivente é quem pode abrir uma saída para o homo sacer, assegurar-lhe o direito de narrar sua restante vida – experiência. Ele sabe que o amor pode ser um mal errante e “não se dirige a ninguém em particular, mas à reconstituição” (LLANSOL, 2004, p. 27) e, dessa forma, mesmo em uma cidade sitiada, sua figura não se alimenta da tristeza, da desilusão nem da melancolia, embora essas três palavras estejam sempre por perto, mas se sustenta da “iguaria inesquecível da alegria” (LLANSOL, 2004, p. 31). A alegria, sobretudo para nós, é e deve ainda ser a prova dos nove. Ao fim dos “Contos do mal errante”, a cidade é um deserto, “nada se une, tudo flutua e se afasta indefinidamente” (LLANSOL, 2004, p. 252), mas há uma aposta na passagem, na travessia do mal errante

 

Quanto a mim, aposto na literatura, esse suporte por onde passa a narrativa da “restante vida”, daqueles que ainda insistem que narrar a experiência é manter sempre vivo o limite tênue que demarca o exílio e a porta que vai dar no mundo. Como o camponês de Kafka, o escritor encontra-se diante da porta da lei, atônito, mas “evoluindo para pobre” e, portanto, sem nada a perder. Nessa espécie de pobreza, não ficará prostrado ali até o dia de sua morte, suplicando ao guardião da porta alguma explicação, pois ele pode fazer outra coisa: escrever. Assim, munido de esperança, essa “afirmação do improvável”, o escritor pode gravar, na porta, algo próximo às palavras finais de “Contos do mal errante”: “Figuras do meu destino, figuras do seu destino, sede compacientes connosco. Dai-nos a ver, ao fim da nossa viagem, o rosto claro e radioso da alegria” (LLANSOL, 2004, p. 255). 

E o faz como fazem os corpos que aqui se encontram ocupando este espaço para que possa abri-lo para a desocupação do poder que como um trator, em nome da produção, do utilitarismo, da semelhança e da promessa de um futuro bem estar passa por cima dos que ainda ousam sustentar o direito a um pensamento que não se encerre em questão alguma, mas que se lança ao aberto e em nome de uma comunidade sempre por vir. A experiência limítrofe que a literatura impõe a quem a encontra é a de caminhar sobre um abismo, sobre um fio de navalha, mas não são as imagens refletidas desse fio e desse abismo a experiência da literatura, pois assim estaríamos simplesmente face ao jogo de espelhos da ficção, da representação. Caminhando sobre o fio da navalha do Real, abismados, abandonados de todo e qualquer artifício, nus, pobres, nos daremos conta de que ainda nos resta “o percurso de um corpo como súmula da sua potência de agir” (LLANSOL, 1998). Este, munido somente da leitura e da escrita, escreve que a restante vida não é necessariamente uma réstia de vida, mas uma possibilidade de vida; não é uma imagem trágica, mas a possibilidade de uma imagem, pois não se encontra nem aquém nem além dela, mas no seu furo. A possibilidade, esse princípio da esperança, é o que nos faz avançar no campo da restante vida. Mirando no invisível, que a todo momento nos vê, pode-se ler, com mais atenção, o que A. Borges, ao fim de “A restante vida”, escreve: “o homem será. Tudo o que tem corpo de gente poderá ser humano. Todo humano será socialmente insignificante, ou quase” (LLANSOL, 2001, p. 100).

 

Na pobreza dos restos, uma certa comunidade desocupada que vem desocupando espaços antes fixados pelo discurso do poder (escolas, universidades, prédios públicos), sustenta o movimento ético da restante vida de fazer caber, nas dimensões de um corpo, o futuro incerto do homem, pois considera “que um pensamento é um corpo” (NANCY, 2000, p. 111), ou seja, uma “reexistência”, ou ainda uma rexistência, pois para os corpos que integram essa comunidade caminho é sinônimo de atrito, já que a única forma de existir é resistir.  Rexistamos, então.

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João Rocha é doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG, professor da Rede Municipal de Belo Horizonte e técnico da Diretoria de Políticas Intersetoriais da Secretaria de Educação do Município de Belo Horizonte (SMED-BH). Atua no litoral entre literatura e 

psicanálise. Trabalhou por alguns anos com oficinas de literatura, denominadas “Práticas da Letra”, para sujeitos em sofrimento mental, e tal experiência norteia até hoje sua vida. Atualmente, na Secretaria de Educação de Belo Horizonte, compõe a equipe que cuida da convivência nas escolas da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, para as quais elaboram e dão diversas formações para os vários atores que compõem a comunidade escolar, visando a percepção da escola como um ponto na rede de proteção da criança e do adolescente.

[1] Trabalho originalmente apresentado no Colóquio “Corpos políticos: resistência e ocupação”, realizado no Centro de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), nos dias 21 e 22 de novembro de 2016, como uma das atividades da ocupação feita pelos estudantes daquela instituição.

[2] “A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem”. (AGAMBEN, 2010,  p. 35.)

[3]  Cf. ALMEIDA, M. Desocidentada: experiência literária em terra indígena. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

[4]  Carta a João Rocha (arquivo pessoal).

referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

AGAMBEN, Giorgio. Por uma teoria do poder destituinte. Disponível em: <http://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poder-destituinte-de-giorgio-agamben/>. Acesso em: 25 fev.2017

ALMEIDA, Maria Inês de. Desocidentada: a experiência literária em terra indígena. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. 

BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: a palavra plural. Trad. Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001.

GENET, Jean. O ateliê de Giacometti. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2000.

KAFKA, Franz. O processo. Trad. Guimarães editores. Alfragide: Leya, 2009. 

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

LLANSOL, Maria Gabriela. Ardente texto Joshua. Lisboa: Relógio D’água, 1998.

LLANSOL, Maria Gabriela. A restante vida. Lisboa: Relógio D’água, 2001.

LLANSOL, Maria Gabriela. Contos do mal errante. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004.

LLANSOL, Maria Gabriela. Entrevistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2011

LLANSOL, Maria Gabriela. Hölder, de Hölderlin. Lisboa: Colares editora, 1993.

NANCY, Jean-Luc. Corpus. Trad. Tomás Maia. Lisboa: Passagens, 2000.

NANCY, Jean-Luc. La communauté désoeuvrée. Paris : Christian Bourgois Éditeur, 2004.

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