Ela faz filmes porque faz filmes, porque faz filmes
Lucas Ferraço Nassif
RESUMO
Chantal Akerman por Chantal Akerman; Chantal Akerman, cineasta do nosso tempo. Este projeto é a proposta de escrever textos dos textos de Chantal Akerman, entre literal e metafórico, entre documentário e ficção, num real de ficção insurgente. Para isso foi escolhido descrever o que é visto e ouvido no lugar de explicar seus filmes. Uma contenção do estudo (em estudos fílmicos) naquilo que é tido como um primeiro passo; aqui esse primeiro passo é onde se concentra todo o trabalho, destacando passagens possíveis entre os textos, na materialidade do texto. Na tentativa de realizar um estudo terapêutico, desinchando as palavras pela descrição, exercitando frases possíveis (e impossíveis). Os filmes de Chantal Akerman, primeiramente, são vistos e ouvidos, descritos em suas cenas, ações. Descrições feitas em áudio gravado e, em seguida, transcritas. Assim se dá a proposta: considerando, investigando as potencialidades da descrição, da transcrição e da transcriação audio-visual no pensamento e na prática do cinema e da literatura.
PALAVRAS-CHAVE
Chantal Akerman; Filosofia Terapêutica; Transcriação.
Lucas Ferraço Nassif é mestre em Arquitetura pela PUC-Rio e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela mesma instituição. O longa no qual foi diretor e montador, Being Boring, foi exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes (2016), no Janela Internacional de Cinema do
Recife (2016), e na Semana dos Realizadores, no Rio de Janeiro (2015)
Entre panorâmica, travelling e câmera fixa (sempre há a possibilidade da câmera fixa), Chantal Akerman lê e escreve, filma ela mesma, cineasta do nosso tempo. A proposta do filme é ser um episódio da série “Cinema, do nosso tempo” que, por vários anos, convidou cineastas para realizarem filmes sobre – ou com? – outros cineastas. Chantal Akerman faz um filme sobre si mesma. Um filme divido em três atos (é assim que chamo os três grandes cortes na sua montagem que separam partes da sua organização). No primeiro ato há Chantal (por que a chamo de “Chantal”, não de “Akerman” – porque me sinto mais íntimo, ou isso se aplica devido à desigualdade entre cineastas, entre artistas homens e mulheres?), que lê uma carta que escreveu na sala de sua casa, junto de seu cachorro, sobre “Chantal Akerman por Chantal Akerman” – mais precisamente: sobre “Chantal Akerman, cineasta do nosso tempo”. Em seguida, é exibida uma longa montagem de seus trabalhos, de seus filmes; a montagem não é feita cronologicamente, tampouco é realizada colocando próximos todos os seus filmes existentes até a data. É ela, a montagem, aquilo que ocupa a grande parte da duração do que vejo. Finalmente, no terceiro ato, vejo de novo Chantal Akerman. Agora, noutro lugar que acredito ainda ser sua casa, sentada com uma das pernas sobre um dos braços da poltrona. Ela diz cinco frases.
Chantal Akerman filma a si mesma como cineasta do nosso tempo. Chantal Akerman, cineasta do nosso tempo, filma a si mesma. Ela lê um texto que escreveu sobre isso, sobre fazer um filme sobre si mesma, cineasta do nosso tempo. Adiante, entram as cenas de seus outros filmes: talvez para que falem por ela? Talvez, não. Para que falem com ela? Para que falem comigo, conosco? Filosofia terapêutica, cinema terapêutico: com calma, lemos e escrevemos. Entretanto, uma calma atenta, na beira de uma leve angústia. Uma calma da filosofia na tentativa de ir respirando junto do filme, descrevendo ao invés de explicando, evitando os conceitos, apelando para as palavras e para “como” usamos as palavras, o que fazemos com elas; em prol das frases lidas e das possíveis frases escritas – no desejo de se contentar em descrever ao invés de explicar através de um conceito que diga tudo o que se poderia dizer. E uma calma do cinema, das imagens que passam a serem narradas e transcritas para este papel (ou melhor: para esse documento de .word, no computador, de volta à tela de onde os filmes foram vistos). Imagens e calma que não são descritas como protetor de tela (screensaver); a descrição é inquieta (disse estar na beira de uma leve angústia) e levaria – essa é a hipótese – a outro lugar que ainda não se sabe o que é, que até agora se apresenta como uma tentativa, uma busca sobre o “como”: a proposição de uma proposta.
Um voluntarismo? Preguiça? Talvez – mais um voluntarismo (do que preguiça) diante de uma possível falta inicial (ou final, sempre) de valor artístico ou acadêmico deste trabalho proposto, que é realizado por mim que leio e que escrevo com Chantal Akerman. Motivado por uma identificação de que talvez essa também seja uma motivação da própria Chantal Akerman – da sua tentativa de auto-retrato e de várias outras de suas tentativas que caminham pelas margens do literal e do metafórico, do referente a um real rompido pela ficção. Propor algo que parece não ter valor, o voluntarismo? A tentativa, a busca, estar na beira de uma leve angústia, a calma, a preguiça, o trabalho. Pela descrição, confundir forma e conteúdo.
Imagens inventadas: realizadas e depois organizadas na montagem de um filme que agora vejo e descrevo utilizando o gravador do telefone celular e a minha voz, anos depois de seu lançamento em 1997. Que, em seguida, transcrevo. Transcrevo a gravação daquilo que falo enquanto vejo e ouço o filme, a observação das suas cenas, das suas encenações propostas. Dessa maneira, eu, com Chantal Akerman, aponto uma coisa que tento fazer, pensando no “como”. Tento, na transcrição, dizer novamente o que já foi dito por mim mesmo em áudio, na descrição do filme, destacando as potencialidades textuais dessas passagens. Interrupções, bloqueios, brechas, o fortuito, a re-visão, achados, perdidos: o que é lido e o que é escrito, o filme visto e ouvido, o audio-visual, a gravação que o descreve, a transcrição, o “texto” que procura maneiras de colocar tudo isso junto. Leitura e escrita.
Eu escrevo um texto do texto de Chantal Akerman. Seu filme é, talvez, o roteiro deste filme aqui, a encenação que origina esta encenação: a representação das relações entre os textos, considerando dificuldades, incapacidades e aberturas possíveis. Faço uma leitura de suas leituras, uma invenção das suas invenções. Com Chantal Akerman, essa pesquisa se passa; ela não é, mas pode ser, um estudo de seus filmes. O interesse está na insistência de pensar o “como”, de trabalhar exaustivamente um texto da escrita da escrita, da leitura da leitura, da invenção da invenção. O terapêutico, indico novamente, não é quieto ou pacífico; a calma duvida de algumas inquietudes e recusa os conceitos, abrindo espaço para outras maneiras de se trabalhar. O terapêutico não é tranquilo: é um certo relaxamento que permite o risco, a experimentação nas tensões, na beira, nos limites. Uma calma que talvez seja trágica no excesso da insistência e da exaustão, mas ainda provavelmente patética em seu valor artístico ou acadêmico.
“A tensão é um problema. Ela deve ir embora”, ela diz. A sala de um apartamento: e eu consigo pensar que é a sala do apartamento onde mora Chantal Akerman. Mas também é um lugar de trabalho. Há um cachorro, uma mesinha, o piso é de madeira. Ao fundo, cortinas e duas janelas, uma de frente para a câmera (por onde consigo ver o prédio vizinho) e uma janela na esquerda, tapada pela cortina; dela só vejo a claridade. Na parede da esquerda, há um computador sobre uma mesa. Todas as cadeiras são pretas. Na parede de frente para a câmera, também uma mesa com um computador, além de um abajur de trabalho. O cachorro é peludo, de porte médio, impressiona pela maneira calma que anda pela sala e por não conseguir ver seu rosto muito bem devido aos pelos.
Chantal Akerman entra na sala. Ela veste um sapato preto, uma calça preta, uma blusa branca listrada de preto e um paletó preto. Ela se senta, cruza as pernas, pega um cigarro. A cadeira range um pouco no tempo entre ela se acomodar e começar a falar. Quando ela pega o cigarro, suas mãos se colocam de um jeito estranho, bonito, e o cachorro a olha – e ela olha para a câmera (ou para mim, para a gente). Ela conta como decidiu realizar este filme. Cinema das vacas magras, do nada que se tem a dizer, na e a partir de Bruxelas, da filha judia, do segundo mandamento. Fazer filmes e a dificuldade, o desafio de escrever. Nisso, diz: “Eu faço filmes porque escrever era um desafio muito grande”. E diz que dizem: “Ela faz filmes porque faz filmes, porque faz filmes...”.
Enquanto conta como decidiu realizar este filme, são feitos alguns pequenos cortes. A imagem se aproxima de Chantal Akerman de corte em corte – até que, finalmente, estou num plano muito fechado nela. Seu pescoço, seu rosto e um fundo desfocado. Outro corte, diferente dos anteriores, leva a uma tela preta. “Autoportrait”, “autorretrato”, é o que está escrito nessa tela preta, seguido de “avec, par ordre d'apparition”, “com, por ordem de aparição”. São listados os títulos dos filmes que fazem parte da montagem anunciada por ela; e de seus filmes realizados que não fazem parte dessa montagem. As legendas em português falam da falta de legendas adiante: que, nos fragmentos de filmes, não se exibem legendas.
Transcrevendo, eu me incomodo com minha voz que lê os títulos de todos os filmes listados na tela preta. Passo rapidamente essa parte e, em command + shift + 4, decido colar as próprias telas neste texto.
Então surge a primeira cena da montagem. Feita de um barco, a câmera balança num ritmo e filma prédios enormes. É Nova York. Eu sei mesmo sem nunca ter ido; sei por outras imagens que já vi várias outras vezes, não somente em Chantal Akerman. Uma voz off que não consigo entender bem, com forte sotaque francês, diz algo em inglês. Estou no mar, ou num rio, na correnteza. Um navio passa pelo navio onde estou – e a música que toca é clássica, um violoncelo que emociona (sempre o violoncelo toca mais do que os outros instrumentos). A voz off conta uma história, em inglês, num (ou com um?) forte sotaque. A história é sobre uma árvore, uma floresta, um avô e um neto, sobre filhos. Balançando muito, a câmera filma e as imagens são azuladas, os prédios quase pretos, vários pontos amarelos que são as luzes desses prédios e algum verde.
Pessoas andam numa paisagem muito fria, com gelo. Ouço esse gelo se quebrar no ritmo em que andam as pessoas pela paisagem. Numa estrada de asfalto, na paisagem. São cinco pessoas, elas andam em perspectiva, a vegetação é marrom, de frio, morta ou esperando a primavera para esverdear. O ritmo dos passos é obtido pelo barulho do gelo pisado. É quase tudo branco e o solo, como é filmado, parece maior que o céu – ele ocupa quase tudo e o céu é como uma colagem nessa superfície branca. As pessoas andam, não mais em direção ao fundo do quadro, mas da esquerda para a direita. Tudo é quase somente neve, e enxergo os contornos de uma nuvem no céu.
Jeanne Dielman, a personagem mais conhecida dos filmes da cineasta. Poderia dizer que vejo uma mulher, desconhecida, mas sei que ela é Jeanne Dielman. É impossível descrevê-la como “vejo uma mulher etc.”: digo, portanto, “vejo Jeanne Dielman”. O plano é frontal na cozinha, mas ela está sentada da esquerda para a direita, de lado, postura firme. Ela apoia os braços na mesa, a respiração não está muito marcada. Sinto vontade de tomar mais café, digo: deveria ter feito uma garrafa ao invés de apenas uma xícara. Hoje tomo café numa caneca – e não numa pequena xícara. É melhor mais café do que menos café, apesar das leves irritações no estômago e de ficar um pouco agitado. Pego-me pensando na terceira que irei tomar enquanto transcrevo; vou à cozinha. Mas Jeanne Dielman não deve estar lá. A cena é lenta e sem barulho, até um corte que me leva a uma estrada por onde passam carros, caminhões barulhentos e onde vejo duas mulheres do outro lado da pista. Deve fazer bastante frio, mas o café que busquei está bem quente. Jeanne Dielman volta, ainda na cozinha, câmera fixa e frontal – ela está de frente, vai preparar algo para o almoço ou para o jantar. Sobre a mesa estão os utensílios e os ingredientes. Lembro-me de um programa de culinária.
Paro de transcrever, na desculpa de ir pegar outro café. Mas me deito; de bruços, bochecha esquerda colada no chão frio. Fico deitado por um tempo, olhando vazio, de olhos meio vazios, cansados, preguiçoso, mas exausto de nada: vendo como a casa precisa de uma faxina que não será feita. Minha mãe irá reclamar da próxima vez que vier ao Rio. Então isso é mesmo físico? Depois de ver Jeanne Dielman preparando algo para o almoço ou para o jantar, um corte leva a outra mulher numa cozinha que lembra a dela. Ela toma um café enquanto ouve uma música que vem de longe, da sala, acredito. Tomar o café é encenado, a mulher tenta encontrar um ritmo entre descansar a xícara no pires e levá-la à boca enquanto ouve a música e responde sorrindo ao que ouve.
Um homem de terno, bem vestido, sentado num quarto de hotel. Ele está sentado numa poltrona que parece confortável. De uma maneira charmosa, aponto na descrição, é como ele está sentado. Logo falo que estou um pouco cansado de descrever o filme. O corte, do homem, vai a um salão de baile onde várias pessoas dançam e algumas estão sentadas. Câmera fixa observa um pouco de longe a movimentação. Alguém canta, uma mulher, numa língua que não conheço de um placo onde também está uma banda. Um refrão se repete e insiste e passa a ecoar em minha cabeça. Estranho as roupas e gosto delas. Pessoas dançam, conversam, entram no quadro e começam a dançar; dançam em duplas, sempre homem e mulher.
Com seu filho, na mesa da sala, sentados, ela de frente e ele de perfil, Jeanne Dielman vai ler uma carta que tira da bolsa. Ela lê rapidamente e não consigo entender bem o que ela diz; ela não lê para mim, para que eu a entenda – tampouco acho que para seu filho. O que salta na cena é uma luz, talvez uma luz estroboscópica (mas não tão rápida quanto uma luz de festa), que pisca de fora da casa e reflete nos móveis de madeira, mais na madeira lustrada do que no vidro da cristaleira atrás da personagem: tudo deve estar, portanto, bem lustrado. Não consigo definir um ritmo para luz: ela pisca, eventualmente para, e continua. Jeanne Dielman termina de ler, dobra a carta nos vincos onde já estava dobrada, põe no envelope e a coloca na bolsa. Da bolsa ela tira algo, um presentinho (um doce, acredito), e entrega ao filho.
Chantal Akerman está deitada numa cama, na verdade meio sentada, coberta por um cobertor marrom que deixa seus olhos e cabelos à mostra. Cabelo curto; o corte se inicia com o som estridente de violino que é logo encerrado. Então ela diz: “pour faire du cinéma”, “para fazer cinema”. “Eu vou me levantar”, diz ela em francês. Usando um pijama branco, ela se levanta, diz que para fazer cinema é preciso estar vestida, então “vistamo-nos”. O quadro é o de uma parede branca, e na parte inferior do quadro aparece uma mulher – que não é Chantal Akerman, mas que também veste um pijama como o que ela vestia na cena anterior. Essa mulher também pode ser Chantal Akerman, ou não? É a mesma atriz que faz Anna – e Anna também é Chantal Akerman, ou não? Ela olha para a câmera (ou para mim, para a gente: dúvida que volta) e diz “eu preciso me vestir”. Ela sai do quadro (do quarto?) e, ainda enquanto sai, ainda nele, o corte é dado.
O letreiro do filme “Saute ma ville”, que sei ser o primeiro curta de Chantal Akerman. Ele é branco, o filme é em preto e branco e a paisagem é enevoada, os prédios grandes, brutos. Ao fundo, um barulho de obra, de trânsito. “Recit” aparece escrito em preto na tela: “conto”, “estória”, “narrativa”. E uma voz entoa uma melodia, meio zombeteira, cômica, de cartoon: “la la la la la”, numa constância às vezes mais calma, às vezes mais agitada que gruda na imagem. A própria Chantal Akerman é a atriz do filme. Ela entra no prédio, vê o que há na caixa de correio, sobe correndo as escadas enquanto a voz canta, insistentemente, rapidamente. Ao subir as escadas correndo, o elevador também está subindo – ela disputa corrida com ele. Falo da dificuldade de descrever essa cena rápida da corrida, da correria, sobretudo devido à música que invade o espaço da gravação e não me deixa apontar o que vejo e o que ouço (a própria música que me impede de falar dela). Meu pensamento é dificultado pela persistência dessa música. Cansada, ofegante, a voz ainda canta. Voz que canta e boca não têm relação pelo o que eu vejo na imagem – o áudio do “la la la la la”, por mais que acredite também ser feito por ela, não é certificado. Ela entra em casa, veste quase tudo preto, joga as cartas que pegou na caixa de correio, senta-se na mesa da cozinha.
Duas garotas (da idade da atriz-personagem de “Saute ma ville”?), em preto e em branco, uma do lado da outra, um plano frontal. Uma vai fumar, a outra pega um isqueiro e acende seu cigarro. Elas fumam, passam o cigarro de uma para outra. “Tenho filme”; “Tenho fome”. Erro: o correto é “Tenho frio” (respondido por “Tenho fome”), noto na revisão do texto. Não corrijo, alerto. Conversam rapidamente, na voz agitada que contrapõe aos corpos retos no plano frontal. Não se olham – olham para a frente, para fora do quadro, ouvindo e respondendo. Deitam-se na mesma cama, viradas para o mesmo lado (para a câmera), a menor delas ainda fuma o cigarro. As luzes são apagadas, elas dizem “Tenho frio”; “Tenho fome”.
Várias pessoas num ponto, talvez esperando uma condução. Um carro para e dele sai uma jovem que diz “Tchau, papai”. O carro é amassado. Num travelling, a câmera acompanha a jovem – que entra numa estação de trem. Ela veste uma camisa branca listrada de azul; carrega uma pasta, lê um jornal no chão, as calças são em azul escuro. Uma música clássica dramática invade e a câmera acompanha a jovem, vai atrás dela que anda. A música continua, a jovem está num café, ela sorri, vai tirar algumas coisas da pasta que carrega. Coloca a pasta de cabeça para baixo e deixa tudo cair sobre a mesa. Pega um cigarro, fuma. Ela é servida por alguém. Numa folha de papel sobre a mesa, ela escreve. Com a mesma mão, ela escreve e fuma. Na mesma mão tem a caneta e o cigarro, numa estranheza que atrai. “Por favor, desculpem minha filha Michelle, ela está gripada”. A jovem conta o que escreve nos bilhetes, intensificando o ritmo da fala. “Desculpem minha filha Michelle, ela está num enterro, sua avó morreu”; “Desculpem minha filha Michelle, ela está num enterro, seu tio morreu”; “Desculpem minha filha Michelle, ela está num enterro, sua tia morreu seguida à morte de seu tio”; “Desculpem minha filha Michelle, ela está num enterro, seu pai morreu”. Diz olhando para fora do quadro: “Ela morreu”.
Os inícios dos parágrafos incomodam uma vez que parecem emperrados ou pouco criativos. Um lugar, uma pessoa, uma ação, uma frase meio simples depois uma vírgula que procura dar detalhes, uma caracterização. Por exemplo: a cozinha de Jeanne Dielman, que veste um robe. Entretanto, nessa frase, pergunto de maneira boba ao ler novamente: quem é que veste o robe? A cozinha ou Jeanne Dielman? Vai fazer café, penso, pois coloca uma água para ferver. Vai, também, engraxar sapatos. Isso tenho certeza, pois ela pega os sapatos, jornal, a graxa e a escova. Ela engraxa os sapatos do filho. O som das coisas na calma do ambiente, na concentração da atriz, de Jeanne Dielman.
Sentada no chão de uma cozinha – outra cozinha –, Chantal Akerman em “Saute ma ville” também engraxa seus sapatos. O gesto é rude (poderia usar essa palavra?), forte, grosseiro (será?). Não engraxa somente os sapatos, mas as meias, as pernas, num movimento marcado e denso, pesado. Todavia, seu gesto não é mais denso do que o de Jeanne Dielman: há uma densidade diferente nos dois. Sem calma, a personagem de Chantal Akerman engraxa sapatos. E mais. Sim. Na verdade, existe uma calma paradoxal nisso que chamo de grosseiro – que julgo grosseiro. No movimento há um ritmo e nele é possível entrar, acalmar-se. Daí vem isso que digo ser calma. Som e imagem estão levemente dessincronizado. Quando ela engraxa, não ouço de fato o que vejo: mas o que por um breve segundo já vi – ou que ainda verei.
As duas jovens. Elas se levantam de onde estavam deitadas, conversam rapidamente, sempre. Também se movem rapidamente. Encasacadas dentro do quarto (provavelmente o aquecedor não deve funcionar), tiram um lápis de olho e passam. Ao saírem de casa, está claro; mas, logo em seguida, está de noite. Onde elas poderiam comer? Procuram um lugar? Entram num deles, um restaurante, e começam a cantar dentro do lugar escolhido. “La la la la la la la la la”, novamente. Uma melodia lenta, agradável, de altos e baixos, fragilmente sincronizadas, ensaiadas. Provavelmente não ensaiaram. O mâitre pede para que se retirem; elas insistem sem sucesso.
Um filme muito colorido e uma outra mulher olha de frente. Nesse plano frontal, a mulher está sentada numa cadeira, atrás de uma mesa branca, num jardim que parece ser a área externa de um restaurante. A toalha de mesa é ocre e o jardim é iluminado por lâmpadas penduradas. Ela toma um café, um capuccino. Talvez seja um milkshake. É um milkshake. Ela olha para cima e para fora, como se sonhasse acordada. Perturbando o que vejo, ouço e descrevo do filme, entram várias buzinas na gravação; essas buzinas vêm da rua perto da minha casa, dos carros se apressando depois da abertura do sinal. “Bonita noite”, diz ela em inglês. Respondida por outros dois homens que falam acerca dessa bonita noite. A fala é teatral, alegre, na irrupção de um sorriso. Fico muito incomodado – com as buzinas ou com as falas, com a maneira em que são faladas as falas? “O que é tão bonito acerca desta noite?”, pergunta um; “Eu não vejo nada bonito”, diz o outro; “Veja o que você vê, desde que ouça”, responde (será uma resposta?). Como nunca estão no mesmo plano, o diálogo se passa como um monólogo em que cada um deles diz algo frontalmente. “Você consegue ouvir os seus pensamentos?”; “Eu não tenho pensamentos”; “Tampouco eu”.
Noutro lugar aberto, um homem. Não estou num jardim, é como um descampado nas margens de estradas, de cidades, terrenos baldios. Ele veste um terno cinza. Entra uma mulher: “O que você está fazendo aqui?”; “Eu estou esperando”; “Você está esperando pelo quê? Não há nada para esperar neste mundo”; “Você está dançando?”; “Você está perguntando?”; “Eu não estou perguntando”; “Eu estou dançando”. Ela toca em seu braço e eles saem do plano. Ele carrega uma mala.
Apoiada numa parede, uma mulher fuma um cigarro. Olhando para o alto. Interesso-me pela maneira como ela segura o maço de cigarros (usando as duas mãos para isso). Olhando para fora do plano, ela fuma, fica ali. Ouço passos, alguém se aproxima, abre uma porta e entra em algum lugar. Não vejo essa pessoa, somente ouço. A mulher é mais velha e dizem de fora do plano “mamãe” (para ela?). Será a mãe da própria Chantal Akerman – talvez? Digo isso quase trapaceando uma vez que já vi sua mãe noutros filmes e a mulher se parece com ela. Por breves momentos, seu olhar coincide com o da câmera, discretamente, tímida. O cigarro acaba, ela se vira e entra por uma porta que range ao ser aberta.
Música alta e vários jovens dançam, em roda, numa festa. A protagonista é a jovem que disse ter morrido (assim como sua avó, seu tio e sua tia). Michelle: deve ser esse o seu nome. Toca “La Bamba”. A câmera está no meio da roda, a música alta dificulta a descrição. Michelle dança no meio dessa roda com uma outra garota, desconhecida por mim. Elas se cumprimentam (ou se despedem) com dois beijinhos e a desconhecida sai para dançar com um outro jovem. “La Bamba” continua e Michelle parece se divertir, pela expressão de seu rosto. Do meio da roda, ela olha para os que dançam em volta. Olha para a garota que já dançou com ela ao centro e decide chamá-la para dançar de novo. Talvez seja um flerte. Acaba a música; um pequeno silêncio em que as personagens se olham e olham ao redor. Outra música se inicia e um jovem busca a garota para dançar junto. “This is a man's world”, toca. Ela vai e não há muito o que fazer. A câmera se aproxima do rosto de Michelle, que respira forte, pensa; as pessoas dançam pela sala e fora da casa. Michelle olha para algum lugar, mas não sei onde, não é feito um corte que permite que eu diga o que ela vê (posso somente especular). Até que deixa a sala.
A voz de Chantal Akerman e uma fruta amarela. “Isto aqui não é uma maçã”. O violino estridente, novamente. E a fruta amarela está sobre uma mesa em azul – uma composição tão estridente quanto o som do violino. Uma maçã verde. Uma laranja. Uma rosa vermelha, suas pétalas.
Cantando, uma mulher é regida por Chantal Akerman. Ambas têm fones de ouvido grandes e Chantal Akerman veste uma camiseta branca um pouco larga, com as mangas curtas dobradas. Isso é realizado num estúdio de gravação. De costas para mim, ela rege, mas não sei se sabe reger. Rege talvez como uma piada, e a música é emocionante, bonita, alegre; também chorosa, melodramática (“O amor é mais forte que tudo”, canta em francês). “Eu me chamo Aurora”, diz uma mulher após o corte. Em seguida: dançarinos. Várias dançarinos, pessoas atrás de duas mulheres. Uma vestida de noiva, chorando, e a outra que a consola. Eles dançam, os dançarinos, homens e mulheres, balançando lentamente, em roupas variadas, coloridas. O melodrama da música é o melodrama do diálogo e das atuações das duas – da noiva que chora e daquela que a consola. Mais um corte. Tudo muito escuro, algumas pilastras, como se num estúdio, mas ainda a mesma música da cena anterior. Dessa vez em piano, em violino, em saxofone: variações da melodia que se repete ao longo de todas essas cenas. Alegre, adere. A música toma conta. Pessoas caminham por esse espaço escuro, um estúdio, ouço a solidez de seus passos que marcam um ritmo. Dançam: sabem dançar. Dançam juntos, dançarinos de salão profissionais.
Quando a cena muda, a qualidade da imagem também. Ou isso é uma impressão e qualidade alguma mudou? Esta é a documentação de um espetáculo de dança no qual uma mulher se encontra de costas para mim – que a vejo enquanto vê várias outras pessoas que a vêem. Eu os vejo de frente, homens e mulheres, e a vejo de costas. Ela não me vê (acho), mas eles talvez possam. A imagem afunila nessa mulher que está de costas. O grupo de pessoas se reduz a cada fila – uma depois da outra – para que o centro seja ela. Suas roupas são de noite, de gala, a música é dramática, intensa, clássica.
É Anna, personagem que já encontrei, a cineasta Anna em deslocamento pela Europa. Também Chantal Akerman? Na cabine de um trem, em penumbra, Anna fuma. Ouço a voz de um homem, mas não o entendo tanto quanto não o vejo (ele também está na cabine, é um desconhecido). O cigarro que ela fumava não termina, ainda falta muito para acabar, mas mesmo assim o joga fora. Quase dormindo, abrem a porta: é o controlador que pede as carteiras de identidade dos que estão ali.
Este filme que ainda não foi mostrado. Nele, Chantal Akerman está no canto de um quarto. Ela escreve uma carta, sentada num chão de madeira, suas roupas são para o frio, largas, parecem confortáveis. Seu cabelo é preto e longo. Enquanto escreve, de um pacote de papel muito amassado, ela come açúcar (ou algo branco que lembra açúcar). Com uma colher, a jovem Chantal Akerman come açúcar ao escrever: num ritmo e numa força algo obsessivo, sem muita atenção, às vezes errando o pacote. Pega açúcar e leva a colher na boca, fico tonto por ela. A atenção está no que escreve, naquilo que deve ser uma carta. Escrever uma carta parece ser como engraxar sapatos. Escrever uma carta e comer açúcar. Olha para câmera antes do corte.
Ou um prédio com muitos apartamentos, ou um corredor de hotel. Carpete vermelho sobre o qual anda a mulher que estava na cabine do trem. Anna. Ela para diante de uma porta onde estão sapatos pretos (de homem?) e uma bandeja de serviço de quarto (é um hotel, sim) com comida. Sem talheres, diretamente com a mão, ela come as ervilhas que estão no prato e me faz pensar em comer ervilhas com as minhas mãos. Meu café, a consistência das ervilhas um pouco amaçadas na minha mão que as leva à boca. A carne preparada por Jeanne Dielman (essa imagem já passou, não vem depois dessas na montagem do filme, eu que a trouxe).
Vários homens vestindo termos de cores diferentes. E uma mulher entra num placo, vestida de gala. A imagem é documental. Um carro passa ao fundo da gravação. Sobretudo, as cores das roupas dos homens são preto e cinza. Leve, a coreografia é delicada; simples, num círculo, um atrás do outro, homens e mulheres. A música é em alemão, de um cantor que canta de uma maneira que não é nem de hoje, nem de 1980 (quando acho que foi feito esse filme). Eles sorriem um pouco, levam às mãos aos bolsos, às orelhas. Homens e mulheres dançam assim. Repetindo os mesmos movimentos num palco que talvez seja um grande salão de baile. Também em roda, também num salão, mas lentamente, calmamente: uma dança promenade. Dá vontade de não falar nada, não pensar em nada. Não explicar, só ver e ouvir – mas também, nem ao menos, descrever. Então por que este texto? Para quê este trabalho?
Travelling. Muitas pessoas numa longa e larga calçada, talvez num ponto esperando uma condução. São, entretanto, muitas pessoas, numa longa e larga calçada; devem, portanto, ser vários pontos. Essa é uma das pistas, de onde a câmera filme, a primeira: depois dela há várias outras, ao fundo, por onde vão os carros e calçadas onde passam e esperam pedestres. Eles vestem casacos, faz frio. Suas roupas são diferentes, entre gorros, chapéus; uns casacos mais pesados do que outros, de cores e de modelos muito diferentes. Uns olham para a câmera, outros não.
A câmera de longe filma um restaurante de rua, um diner americano. Bancos, balcões, superfícies metálicas e o logo da Coca-cola. Provavelmente há um letreiro onde está escrito Donut Shop pois digo que isso é um Donut Shop. Carros, ônibus que passam tomam o primeiro plano da câmera fixa. Uma narração em off diz algo que não entendo bem, num sotaque francês, na voz de Chantal Akerman. Precisaria entender o que é dito, mas não consigo. Basta ouvir seu sotaque francês, sua voz que talvez esteja lendo, falando em inglês para entender algo? Penso que não: que talvez não baste, que talvez não seja o suficiente. No entanto, não vou às legendas; deixo as coisas assim. Menos pela (por causa de, em favor de?) preguiça e mais pela tentativa de, no fracasso do entendimento das palavras – de seus significados numa língua falada que não consigo apreender – destacar o sotaque, a resistência da voz (a minha e a dela). Sua voz é tão resistente que ultrapassa o corte e segue para o outro plano. Agora, no outro plano, vejo um hidrante quebrado no fim da tarde, melhor: anoitece num dia de verão num país do norte. Por isso o hidrante quebrado, e as crianças brincando com a água; deve fazer calor. Barulho de rua, carros e pessoas andando, o hidrante, a água, as crianças brincando. A voz continua nessa outra imagem após o corte; na verdade, ela é em francês, não em inglês com sotaque. Ainda não consigo entender o que é dito e aceito.
Corte. Chantal Akerman fala; papel nas mãos, olhando para esse papel e para a câmera. Para mim, para você? Sempre o acréscimo dessa dúvida seguido dessa frase: “alguém olha para a câmera etc.”. A dúvida que retorna, sem resposta definida, correta, sempre. Sentada numa poltrona, ela está numa posição interessante; é filmada da lateral dessa poltrona, mas está sentada de lado, para responder ou perguntar frontalmente. Talvez esteja confortável, relaxada e, arrisco, contente. Não sei ao certo por que arrisco apontar algum contentamento. Não sei, apenas acho. Há talvez um leve sorriso, alguma alegria na sua tentativa, no trabalho de montagem de anos de trabalho, na(s) experimentação(ões) propostas – e nesse próprio filme que é mais uma delas. Chantal Akerman diz: “Última tentativa de autorretrato”; “Eu me chamo Chantal Akerman”; “Eu nasci em Bruxelas”; “E isso é verdade”; “E isso é verdade”.
referências fílmicas e bibliográficas
AKERMAN, Chantal. Cinéastes de notre temps: Chantal Akerman par Chantal Akerman. 1997. [Filme].
BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
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_________. Para além do princípio da saudade: a teoria benjaminiana da tradução. In: NÓBREGA, Thelma; TÁPIA, Marcelo (org). Haroldo de Campos – Transcriação. São Paulo: Perspectiva, 2015.
DELEUZE, Giles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011
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