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revista ensaia/ n.3_junho2017/ LABORATÓRIO

Ela não aguentava mais

Clarisse Zarvos

Meu nome é Clarisse Zarvos, trabalho com teatro e sou doutoranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. O texto que vem a seguir faz parte da performance Ela não aguentava mais, realizada na mostra de cenas curtas do Projeto T3 (ESMAE, Porto, Portugal) e reapresentada na mostra Esforços, organizada pela Realizadora Miúda (Rio de Janeiro, Brasil). Esta pesquisa cênica vem sendo desenvolvida paralelamente à escrita da minha tese, Dramaturgias da Peste. Nesta ação performativa misturo realidade e ficção, escrita acadêmica e teatro, na tentativa de refletir sobre possíveis maneiras de criação artística e de posicionamento político enquanto artista no mundo.

 

Ela não aguentava mais

Boa noite. É um prazer enorme estar aqui com vocês. Eu vim de longe, como vocês podem notar e a história que eu vou narrar é baseada em fatos reais. Eu mesma tive acesso a alguns documentos e arquivos que deram origem a ela. Este fato – que mais parece sonho, mentira ou ficção – foi detalhadamente descrito por diferentes escritores latinos e alemães, dentre eles comerciantes, advogados e oficiais. Apesar de boa parte dos originais desses arquivos ter sido destruída durante a guerra franco-prussiana de 1870, alguns manuscritos foram copiados e transcritos por historiadores locais e donos de antiquários, permitindo com que a narrativa de algum modo atravessasse gerações e gerações. Essa história, que aconteceu há mais ou menos 498 anos atrás, em Estrasburgo (antiga Alemanha, atual França), começa com uma mulher: o nome dela é Frau Lucrécia.

Manuscrito 1

Frau Lucrécia acorda no meio da noite com vontade de fazer xixi. Ela se levanta com muito cuidado para não fazer barulho e não acordar o marido. O banheiro fica do lado de fora do casebre. Ela acende uma vela e atravessa o quintal. Não há ninguém do lado de fora. De súbito, Frau Lucrécia tropeça numa ratazana morta. Desorientada, ela permanece na paisagem negra de uma noite nublada de lua nova. Eis que de modo inesperado, o cenário se ilumina. Um enorme meteorito em chamas cruza o céu de Eisinsheim, anunciando uma mudança imensurável.

Manuscrito 2

 

Corre à boca miúda que nesta época em que vivemos, alguns membros do clero participam de atos desonestos e indecorosos. Padres e freiras são acusados de manterem relações sexuais e de assassinarem seus filhos bastardos, frutos dessas relações. Alguns padres recebem visitas de prostitutas, outros convidam os coroinhas para os quartos. Fazem vastas refeições com carne e bebida, usam belas roupas e jóias caras. Cobram dízimos altíssimos. Como pode um clero tão corrupto e desonesto como este, que nem de longe atende aos valores que cobra, absolver ou purificar alguma alma?

Manuscrito 3

Frau Lucrécia acordou cedo, já lavou roupa no rio, já buscou a lenha, já se embrenhou na floresta atrás de um coelho, de frutas ou de qualquer coisa pra comer nesses tempos tão difíceis de escassez. Tudo que ela conseguiu foi um pombo, que ela derrubou não sei como jogando uma pedra. Nesse momento, ela prepara o pombo para o almoço, enquanto o seu filho, um miúdo de 4 anos puxa a sua saia e mostra pra ela, agitando pelo rabo, um ratinho morto.

 

 

 

 

 

 

 

 

Manuscrito 4 (A História narrada pelo rato)

os restos de verduras, nos trapos jogados nas ruas, nas portas das casas vários de nós fomos encontrados mortos. Apodrecendo ao ar livre sem direito a um enterro digno. Os boatos de que a peste bubônica se aproximava apavoraram a população. Logo, o rumor se mostrou realidade: a doença se espalhou rapidamente, levando morte e dor ao povo de Estrasburgo. Agravando um pouco mais este cenário, a natureza inquieta decidiu se manifestar através de secas e tempestades. As alterações climáticas somadas à impossibilidade de muitos homens trabalharem no campo por conta das doenças intensificaram a fome, que já não era pouca.

Com a queda dos preços da agricultura, camponeses livres, constantemente endividados com seus senhores, converteram-se em escravos, condenados à danação eterna, visto que não podiam pagar os altos dízimos cobrados pela Igreja. Alguns grupos ainda tentaram se rebelar, mas foram descobertos e eliminados. Por sorte, uma vez por ano, havia o carnaval.

Manuscrito 5

Nesse momento Frau Lucrécia prepara o almoço. Eis que o seu marido entra chutando a barriga de Frau Lucrécia.

MARIDO DE FRAU LUCRÉCIA berra: “Eu vou te matar. Tem três ratos mortos na porta de casa! Porque você não varreu? O que é isso você está fazendo? Pombo? Eu odeio pombo! Eu vou te matar”.

Manuscrito 6

Um belo dia Frau Troffea saiu de casa e começou a dançar. Mas não havia nenhuma música tocando, tampouco ela demonstrava sinais de alegria. Mexia as pernas e balançava o vestido, enquanto seu marido assistia à cena, consternado. As horas passavam e Frau Troffea não conseguia parar. Até que enfim, caiu adormecida. Mas que descanso que nada! Foi só o dia raiar para ela continuar a se balançar violentamente de um lado para o outro.

No terceiro dia de dança, os pés de Frau Troffea sangraram. Dezenas de espectadores curiosos – dentre eles padres e nobres – acompanhavam com os olhos aquele estranho espetáculo. “Isso só pode ser obra de um espírito inquieto, um demônio infiltrado que agora quer comandar a sua alma”, especularam alguns. “Deve ser castigo para algum pecado”, especularam outros. Frau Troffea não aguentava mais. Estava farta da miséria, da fome, da culpa, da raiva, dos abusos, da exploração, da repetição dos velhos hábitos e da impossibilidade de se expressar. Após dias de exaustão, Frau Troffea foi amarrada e colocada em um vagão em direção a um santuário na montanha de Vosges.

O que ninguém podia imaginar é que em menos de uma semana, trinta pessoas fossem para as ruas tomadas pela mesma urgente necessidade de dançar. Nas casas e nos espaços públicos, o medo assombrava os cidadãos. A epidemia espalhou-se de modo alarmante. Não demorou muito para que cem... duzentas... trezentas pessoas dançassem em enlouquecido abandono.

CORO: “É pela educação ! É pela cultura ! É por uma saúde pública de qualidade ! É pelo direito de ir e vir ! É por maior representatividade ! Pelos direitos das mulheres ! É pelo fim do monopólio da imprensa ! Pelo fim da homofobia ! Pelo fim da corrupção de nossos governantes ! É pelo meio ambiente ! Pelas minorias ! É pelos nossos direitos.”

A situação fugia cada vez mais do controle e as autoridades exigiam explicações para físicos e médicos, que apesar de não chegarem a nenhum consenso, fizeram prescrições bastante curiosas. Alguns foram enfáticos: o remédio para a dança compulsiva era ainda mais dança. O “mal” poderia ser eliminado através do suor. Em um primeiro momento, os enfermos foram colocados sobre um palco de uma feira onde podiam dançar sem interrupção. Mas música, mais do que expurgar de uma vez aquela dança, a estimulava mais ainda, multiplicando os contaminados. E assim a música foi novamente banida das feiras, bem como a exibição dos dançarinos. Os contaminados foram levados para uma capela de São Vitus e submetidos à diversos rituais de exorcismo, os quais não entraremos em detalhes aqui. Não era prudente expôr essa ferida social.

Este episódio ficou conhecido em alguns livros de História como a Epidemia de Dança de Estrasburgo de 1518. Embora este tenha sido o caso mais famoso, casos semelhantes foram relatados entre a Idade Média e o Renascimento em Portugal, na Espanha, Inglaterra, Holanda, Alemanha, França e Itália. Ninguém nunca conseguiu esclarecer as causas da epidemia, mas alguns pesquisadores contemporâneos acreditam que houve na época uma mutação do trigo cuja reação química produzia um efeito semelhante ao do LSD. Já outra linha também atual afirma que este foi um dos primeiros casos conhecidos de histeria coletiva.

Segundo Artaud, em “O Teatro e a Peste” (1983, p, 19-29), momentos de conflitos e agitações políticas ou naturais constituem épocas em que um imaginário mais profundo pode ser liberado nas mentes das pessoas. Artaud enxerga a doença como uma entidade física e não como um vírus. Para ele, acontecimentos como a peste impõem uma grande mudança social, na medida em que o comportamento humano acaba por contradizer a lógica e o sentido das convenções sociais. Trata-se de uma experiência coletiva com fortes consequências psíquicas.

Sua proposta não se dirige a um embate ou a construção de um programa político, no sentido de um projeto social ou partidário. O teatro de Artaud não se agita em prol de uma causa particular. Sua força política corresponde ao abalo promovido nas bases do teatro, da arte e da vida.  O teatro pestífero de Artaud aparece como “vitorioso e vingativo”. As imagens latentes se ampliam através dos “gestos mais extremos” que reforçam “o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada” [1] (ARTAUD, 1983, p. 34).

Desde 2008, pudemos assistir diversos movimentos de protesto se espalharem de modo viral por todo planeta. Tunísia, Líbia, Egito, Iêmen, Bielorússia, Grécia, Turquia, Espanha, Portugal, França, Inglaterra, Estados Unidos, Chile, Brasil, entre outros países. Tendo como pano de fundo uma crise econômica e social que já vinha se agravando desde 2008, movimentos presentes nestes e em outros países propagaram-se de forma epidêmica. Nos Estados Unidos, a ocupação de Wall Street repercutiu em centenas de cidade, em protestos e greves baseados na denúncia de bancos e corporações. No norte da África e em alguns países árabes, as revoltas se organizaram a partir de uma necessidade democrática em oposição a um longo período de ditadura. Na América Latina, a reivindicação estudantil contou com o apoio de diversos setores. Em 2011, no Chile, 3 mil jovens foram para as ruas e dançaram Thriller, do Michael Jackson, como forma de protesto por melhores condições na Educação Pública do país.

Âncora 1

Foto: Anette Alencar.

Foto: Anette Alencar.

Foto: Anette Alencar.

nota

[1] ARTAUD, Antonin. Le Théâtre et son Double. Paris : Éditions Galimard, 1983.

Clarisse Zarvos é atriz, performer e pesquisadora. É doutoranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com mestrado pelo mesmo programa e graduação em Artes Cênicas (Bacharelado em Interpretação) pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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