revista ensaia/ n.2_junho2016/ COMPANHIA
Como funcionam as coisas
Uma entrevista com o artista e educador Jordi Ferreiro
Jordi Ferreiro, Un intento de hacer perceptible lo imperceptible, 2012
Instalação/performance
Foto: Divulgação.
por Rodrigo Carrijo
com a colaboração dos editores*
ENSAIA – Se nos permite, gostaríamos de começar retomando algumas considerações feitas por você em duas situações diversas. Em um texto de apresentação disponível em seu site pessoal, primeiramente, lê-se que você faz uso de “formatos considerados por instituições de exibição como pedagógicos, para então transformá-los em formatos artísticos (e vice-versa) por meio do uso da colaboração e do diálogo.” [1] É nesse sentido que a transformação de visitas guiadas (El traje nuevo del emperador), audioguias (A Conversation with the Museum ou The performance to be performed), conferências (Le Lotissement du Ciel, Hyperconference) e eventos participativos (The Presence) em suas práticas buscam “gerar interferências entre os departamentos de curadoria e mediação de instituições culturais, afastando seu processo dos canais tradicionais da disseminação da arte.” [2] Em um outro momento, numa entrevista concedida a Paloma Rodera em 2015, você afirma que não concebe arte e educação como conceitos separados, além de deixar claro – o que consideramos central para a compreensão do seu trabalho – o fato de a mediação em sua prática artística ser não com o público mas com a instituição, “alimentando essa máquina canibal com tipos de projetos que tentam derretê-la e transformar seu estado no mais líquido possível” [3]. Diante disso, gostaríamos que você nos falasse da relação com o MACBA (Museu de Arte Contemporânea de Barcelona), ao qual é institucionalmente vinculado, comentando por exemplo o seu grau de autonomia e autogestão neste espaço; e ainda, que nos contasse um pouco a respeito de seu entendimento de “instituição” e de “museu”, nos sentidos que pensa essas palavras-conceitos no arco de sua produção.
JORDI FERREIRO – Para começar, trabalho em vários museus como artista desenvolvendo e coordenando projetos performáticos e de mediação, mas é verdade que aonde estou mais vinculado é ao MACBA. Trabalho como artista colaborador no departamento educativo e este é um ponto interessante, porque como artista me interessa muito a comunicação com o público e a instituição, portanto há um certo grau de esquizofrenia em minha vida. Custa-me diferenciar meu horário de trabalho do meu horário de produção artística, inclusive poderia afirmar que uso os espaços de exposição quase como minha oficina de criação...
Acredito que minha posição como artista e educador pode ser interessante para artistas que ainda estão na universidade, porque pode inspirá-los a buscar outros modelos de produção e de sobrevivência que não passam pela venda em galerias – creio que, nesse sentido, há ainda muitas coisas interessantes a se investigar.
ENSAIA – Trabalhando em geral dentro de museus e outras instituições culturais, numa relação sempre pretensamente tensa com esses espaços, a sua prática enfatiza uma certa ideia segundo a qual o público não contempla mas experiencia e joga, o que vai resultar em algum aprendizado. Em um projeto como Departamento Exotérico, que visa criar um departamento de pesquisa em uma instituição de exibição, essa tensão entre a experiência artística e a experiência do aprendizado parece ficar bastante explicitada, diferentemente de outros projetos em que ela aparece de uma forma – ainda que levemente – mais indireta. Suas propostas parecem envolver também uma crítica às instituições de ensino, para além daquela que é direcionada ao próprio espaço cultural onde acontecem. É assim que, em 2012, você fala a Martí Manen da importância de “negociar e desenhar bem o tabuleiro do jogo onde acontecerá a ação” [4], no caso de trabalhos onde há a participação do público para a sua construção. Ao calcular, a priori e com algum método, o seu jogo, você o faz pensando que a ideia de dar total liberdade é “um grande erro, porque a criatividade só aparece se você estabelece alguns limites e o participante tem que recorrer a eles para dominá-los” [5] – como diz no mesmo ano a Domenico Berardinelli. A Berardinelli, então, você continua dizendo que “estimular a imaginação funcional é uma lição muito importante que as escolas deveriam dar (e normalmente não dão). Elas em geral preparam os estudantes para as questões da realidade…mas como lidar com as questões invisíveis? Com as ideias que não podemos resolver?” [6]. As questões seriam portanto as seguintes: de que modo você pensa a configuração do processo ensino-aprendizado no interior de suas práticas? E se, como já chegou a afirmar, você enxerga o espaço da [sua] arte como um tabuleiro de jogo – o artista como mestre e o público como jogador –, aprender seria indissociável da experiência sensível, da qual o artista ou professor seria o condutor? E haveria aí, por fim, uma tentativa de desierarquização do ensino-aprendizado?
JORDI FERREIRO – Já tive que lidar muitas vezes com essa pergunta; mas aí, então, deveríamos analisar profundamente o que entendemos por ensino e aprendizagem e isso nos tomaria muitas páginas. Mas se posso resumir de alguma forma, o que trato de investigar com as minhas obras é produzir situações ou estruturas onde o espectador pode aprender através da tomada criativa de decisões – por isso, muitas vezes, falo de criar projetos como se fossem tabuleiros de jogo, com algumas regras e instruções que o espectador deve seguir para entender a obra em sua totalidade. Não é muito diferente do fato de aprender uma língua pela primeira vez.
Não considero que o artista seja um mestre de quem o público deve aprender, mas considero sim que os artistas temos certos benefícios no contexto educativo para fazer propostas que, no caso dos professores, seriam muito mais custosas. Nós artistas, portanto, podemos criar outras propostas de aprendizagem, mais arriscadas ou à primeira vista irrelevantes, para encontrar conhecimentos inesperados e fora do [circuito] normativo-acadêmico; e também considero que nós artistas temos muito a aprender com isso, ao colocar nosso trabalho sobre a mesa e compartilhá-lo com um público. Eu, se faço arte, é para aprender, e muitos de meus trabalhos surgem da necessidade de aprender como funcionam as coisas.
ENSAIA – Considerando que são caros à sua prática tanto as performances coletivas como os happenings – surgido num período em que a presença de pessoas-agentes de diversas formações contribuiu ao enfraquecimento das relações de supremacia de uma arte sobre outra (John Cage fala de uma indeterminância inerente a esses acontecimentos) –, e uma vez que na história da performance vemos muitas vezes o gesto coletivo ser alternado ou deslocado para performances solo, de cunho autobiográfico ou não, gostaríamos de saber qual o papel, em suas proposições educativo-performativas, da criação de corpos coletivos, ou mesmo se a questão da coletividade ocupa um papel central no seu pensamento artístico. Você acredita, além disso, que nosso tempo é menos propício ao coletivo?
JORDI FERREIRO – Acredito que, no momento que vivemos, é muito difícil não fazer trabalhos que apelem ao "coletivo". No meu caso, há um grande interesse na participação coletiva e na autogestão, que são respostas aos processos educativos que tenho e temos recebido desde a infância, nos quais se busca a individualização e a passividade.
ENSAIA – Deslocando aqui uma fala da curadora Clarissa Diniz, segundo a qual “as pessoas dizem ‘eu tenho o meu projeto’ ou ‘eu sou um curador que trabalha com tais e tais questões’ ou ‘eu sou uma artista que trabalha com a questão do corpo’”, mas “nenhum de nós está no mundo desse jeito. Está todo mundo atravessado por tudo o tempo inteiro” [7], de que modo você percebe a transformação, ao longo do seu percurso artístico, das suas questões? O que significa para você “ter uma questão”? É importante que o artista tenha e persiga uma questão?
JORDI FERREIRO – No campo da arte, ter uma "questão" ou um "tema" é, de certa maneira, uma base e um sistema mental à organização dos nossos interesses, ideias e referências. Minha "questão" ou "investigação" sempre esteve relacionada à comunicação com o público e a instituição, algo que já ocorria em meus primeiros trabalhos e que se articulava também com outros temas, como o jogo e o lúdico. Estes aspectos ainda estão muito presentes no meu trabalho, ainda que, conscientemente, tenha decidido baixar o volume em função do meu incômodo com o crescente boom de termos como "ludificação" ou "gamification", que para mim são metodologias um tanto banalizadas e com uma intenção de rentabilizar a ideia original do jogo.
ENSAIA – Qual a importância dos suportes materiais no desenvolvimento dos seus projetos e que papel eles ocupam junto aos participantes?
JORDI FERREIRO – Dependeria um pouco do projeto em questão; mas, em geral, os objetos não me interessam tanto quanto as reflexões e processos do público oriundos de sua interação com eles. Se analisamos, por exemplo, os objetos ou acessórios que preparo em visitas performáticas, são pequenos objetos que funcionam como detonadores ou como imagens que articulam o discurso.
ENSAIA – Em um trabalho como The performance to be performed, sua performance interativa realizada em Roma no ano de 2013, há uma relação direta com a peça “Seis personagens em busca de um autor”, de Pirandello, e igualmente à forma como ela constrange algumas categorias teatrais como as de personagem, público e ficção. O que interessa a você no teatro?
JORDI FERREIRO – No teatro há muitíssimas coisas que me interessam: a ideia das rubricas, de construir e romper a quarta parede, o corpo e sua relação com o sonoro... O mundo das artes cênicas é um campo do qual tento extrair o máximo possível para trazer ao meu terreno. De fato, estou mais atento ao que acontece nas artes cênicas do que ao que acontece nas artes visuais. Suponho que sempre nos parece mais fresco, inspirador e surpreendente o que não pertence (formalmente) ao nosso campo de trabalho...
Jordi Ferreiro, If this, then that, 2015.
Workshop e performance.
Foto: Divulgação.
Jordi Ferreiro, Departamento Exotérico, 2012-2015.
Centre d'Art Fabra i Coats e MACBA
Foto: Divulgação.
*Colaboraram: Ana Cecilia Reis, Raquel Tamaio, Mayara Yamada, Nathan Braga e Diego Reis
notas
[1] "Ferreiro uses formats considered by exhibiting institutions to be pedagogical, only to transform them into artistic formats (and vice versa) through the use of collaboration and dialogue. [...]." Disponível em: http://jordiferreiro.info/about/.
[2] "Ferreiro’s work seeks to generate interferences between the curation and mediation departments of cultural institutions, moving his process away from the traditional channels of art dissemination. [...]". Idem.
[3] "Así pues, me gusta pensar que los artistas que estamos trabajando sobre mediación, no estamos mediando con el público sino con la institución, alimentando a esa máquina caníbal, con un tipo de proyectos que intentan derretirla y transformar su estado en lo más líquido posible." In: RODERA, Paloma. Derretir la institución. Entrevista a Jordi Ferreiro. Revista eletrônica Culturamas [Espanha], 18 de outubro de 2015. Disponível em: http://www.culturamas.es/blog/2015/10/18/derretir-la-institucion-entrevista-a-jordi-ferreiro/.
[4] "Martí Manen: En la obra de Tino Sehgal, como en la tuya, las personas son clave casi como material de trabajo artístico. Cuando las personas son “el cuerpo” de la obra, ¿se negocia con ellas o se dirige?/Jordi Ferreiro: A la hora de trabajar con gente es importante negociar y diseñar bien el tablero de juego donde va a suceder la acción. Si le damos unas coordenadas exibles al interprete, este se podrá mover con más naturalidad y realismo. En cambio, si solo dirigimos la acción, corremos el riesgo de as xiarlo y que este realice la acción como algo ajeno y eso es muy fácil de percibir por el público." In: MANEN, Martí. Cuando el arte pasa como la vida. Revista Cultura/s, 2012. Disponível em: http://jordiferreiro.info/press.pdf
[5] "Tutto quello che succede è misurato in ogni centimetro. L'idea di dare libertà totale per me à un grande errore perchè la creatività appare solo se si stabiliscono alcuni limiti e il partecipante deve ricorrere a quella per superarli."[...]/ "Everything that happens is measuread in every centimeter. The idea of giving total freedom is to me a big mistake because creativity only appears if you fix some limits and the participant has to resort to this to overcome them" [...] . In: BERARDINELLI, Domenico. Quando a creare è il pubblico. I workshop di Ignacio Uriarte e Jordi Ferreiro/ When the public is the creator. Workshops by Ignacio Uriarte and Jordi Ferreiro. Revista Arte e Critica [Itália], n. 70, 2012.
[6] “[...] Stimolare un'immaginazione funzionale è una lezione importantissima che le scuole dovrevvero dare (e che normalmente non danno). Preparano gli alunni per lo più a problematiche della quotidianità, della realità... però come ci si comporta con le questioni che sono invisibili? Con idee che non sappiamo risolvere?”/ [...] Stimulating functional imagination is a very important lesson that schools should give (and normally don’t give). They mostly prepare students for everyday issues of reality…. but, how do you deal with invisible issues? With the ideias we’re not able to solve?”. In: Idem.
[7] B., Aline; Jr., Jandir e QUINTELLA, Pollyana. "Achar que a arte é o único lugar do sensível é uma balela". Entrevista com Clarissa Diniz. Publicado na Revista Usina. Disponível em: https://revistausina.com/2016/03/17/achar-que-a-arte-e-o-unico-lugar-do-sensivel-e-uma-balela-entrevista-com-clarissa-diniz/.
premissa, Ferreiro realizou projetos em diferentes instituições de âmbito internacional, como Z33 (Bélgica), Zacheta Gallery (Polônia), MAC (Museu de Arte Contemporânea de Bogotá ), Lugar a Dudas (Cali), Valand Academy (Gothemburg), Gaîté lyrique (França) e de âmbito local, como MACBA (Museu de Arte Contemporânea de Barcelona), CaixaForum (La Caixa Foundation Cultural Center), Fabra i Coats (Barcelona Center for Contemporary Art), Matadero (Madrid) e La Casa Encendida (Madrid).
Jordi Ferreiro (Barcelona, 1982) é artista e educador. Seu trabalho consiste em uma investigação sobre os processos de recepção e interpretação da obra de arte, tanto no contexto educativo como no artístico, através do uso da performance e da participação do público. Pretende, ainda, gerar interferências entre os departamentos de curadoria e mediação das instituições culturais, distanciando sua prática dos canais tradicionais de difusão artística. Sob esta
Rodrigo Carrijo (Franca, 1991) é tradutor, pesquisador independente e editor geral da Ensaia, com graduação em Teoria do Teatro (2015) pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).