revista ensaia/ n.1_dezembro2015/ LABORATÓRIO
Ruína: terreno instável como palco
Anoiteceu e ficou um céu róseo. AA está no vermelho, uma cachoeira vermelha com fragmentos universais. Já gritaram e já alvoroçaram. AA passa pela sombra dos galhos das casas dos malandros e não vê ninguém. Sente as cinzas dos artistas no ar. Desliza no degrau amarelo. Apoia-se no azul. Da escadaria vermelha, AA cai na lapa. O lápis está seguro na mão. Rouba um abraço do poste apagado. Quer beijar uma música, mas ela também já foi. Uma gata vira-lata aparece indicando o caminho, AA segue a rua da gata. A gata da rua atravessa uma praça paris e desaparece. AA segue pelo desterro do flamengo, vê um coqueiro em chamas. Ninguém. Está mal ventilado e o terreno é movediço. O lápis seguro na mão. Passam três pessoas correndo de repente. AA se assusta. Não são pessoas, são coisas. Não, são pessoas. Estão juntas, no mesmo ritmo e são azuis. Um gato branco aparece num muro alto agora. AA se aproxima do gato. O chão está mais estável. O gato se contorce numa atitude grotesca por um tempo. É um gato e é uma figura de Picasso. Quando volta desarranjado, o gato se arremessa contra AA e corre aos berros em direção ao hotel abandonado.
AA inspira, corre e grita como o gato branco até provocar uma agitação na arquitetura do hotel arruinado. O hotel tem muitas janelas, mas não tem mais vidros. Há ventilação e devastação ali. AA se debate contra o portão ao lado do hotel feito um bicho. Com gritos no céu da boca e com o lápis seguro na mão, fura o portão e uma palavra é escrita: Glória. O gato branco atravessa por um buraco do portão e se transforma num cão vira-lata que foge assombrado. AA se debilita, mas é daí que virá o próximo grito, da debilidade. Glória se desfigura, o portão termina por se fender. AA entra.
Ruína.
Espaço vazio.
Noite.
Silêncio.
AA sente cheiro das tábuas que costumava pisar em outros tempos, em outros espaços. AA se emociona com a atmosfera carregada de atravessamentos. Da praça paris, a gata vira-lata envia sonoridades felinas desconfortantes. AA enche o peito lentamente e sustenta um longo grito: Solve et coagula.
Silêncio na cena. Pausa dura. Pois aquele espaço raramente experimentou no passado o espírito do desmontar e juntar da alquimia.
Por baixo do terreno instável e arruinado surgem raízes tortas e tropicais. Uma arquitetura ativa e labiríntica é magicamente elaborada ali. Não é bruxaria, é mestiçaria. Pois neste terreno não há pureza que se sustente. Nas raízes estão inscritas uma ou outra letra, AA não consegue ler todas. Mas são letras. Letras-raiz. Ele lê:
“mundo homem”
AA (emocionado): Solve et coagula.
AA (muito emocionado): Solve et coagula.
AA (muito emocionado e abalado): Solve et coagula.
Amanhece alaranjado. AA com o lápis na mão.
É bonito de ver.
Amanhece.
Ruína: terreno instável como palco é parte da dissertação de mestrado intitulada Artaud fragmentado: Sonho e crueldade na cena do corpo, orientada pela professora Tania Rivera (no âmbito do programa em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense) e defendida por Anderson Arêas em 2015. A pesquisa buscou sombras e fricções entre o conceito de crueldade de Antonin Artaud e a linguagem dos sonhos de Sigmund Freud.
Desterro. Anderson Arêas, 2015.