FMNSM
Flávia Péret
NOTA 1
FMNSM é sobre surdez, mas, sobretudo, sobre o seu contrário: a escuta.
"Escutar é estender a orelha (...), é uma intensificação e uma preocupação, uma curiosidade e uma inquietude", escreveu Jean-Luc Nancy.
A escuta é um movimento ativo de abertura e de diálogo.
FMNSM é uma instalação-sonora criada a partir de um poema aberto, ou melhor, um poema em processo sobre os usos (variados, violentos, dissonantes e múltiplos ) da palavra feminismo e a circulação desta palavra em ambientes também violentos, variados, dissonantes e múltiplos.
Estas notas são uma tentativa de pensar o avesso do processo de criação do poema sonoro.
NOTA 2
Em agosto do ano passado, comecei a ler e reler textos feministas com a intenção de escrever um texto para ser lido/apresentado em uma mesa que discutiria o tema as mulheres e a literatura. Parte dessa bibliografia eu já conhecia. Outros textos, como Teoria King Kong (Virginie Despentes) li pela primeira vez naquela ocasião. Nessas leituras, comecei a observar – embora meu foco de interesse naquele momento fosse outro, visões muito diferentes (às vezes complementares, às vezes contraditórias) sobre o que é o feminismo. Comecei a perceber que o feminismo é uma grande zona de conflito.
Paralelamente, na escola do meu filho, uma escola autogerida pelas mães e pelos pais das crianças, iniciamos um ciclo de conversas sobre gênero e educação a partir do livro da escritora nigeriana Chimamanda Adichie: Para educar crianças feministas. Um livro curto, escrito de forma direta e profundamente transformador. A ideia central deste livro é que o feminismo é um aprendizado.
E foi assim, ao me deparar com reflexões/definições sobre a “natureza” do feminismo – tão múltiplas e não idênticas – que surgiu o interesse de investigar esse campo problemático, paradoxal e contraditório que é o feminismo, tentando capturar também, nas mais variadas formas de fala e de discurso, os também múltiplos e contraditórios sentidos desta palavra.
NOTA 3
Neste texto ou poema-lista experimento, um profundo deslocamento. Foi preciso arriscar um movimento de escuta para lugares perigosos (o discurso de ódio contra as mulheres e contra o feminismo que assola as redes sociais) e foi, sempre assustada, que me aproximei dos discursos de ódio que gravitam em torno dessa palavra. O feminismo é também um estigma.
O íntimo, o subjetivo, o particular, o doméstico, o público, o aberto, o polifônico.
NOTA 4
Para tentar entender essa palavra, subtraí dela suas vogais.
E se o feminismo fosse uma sigla?
E se ao ler essa nova palavra-sigla pudéssemos perceber para além dos usos gastos e cotidianos a potência dos seus sentidos, seu devir no mundo?
NOTA 5
Atualmente (setembro de 2018), a lista possui 200 entradas, 200 definições para a palavra feminismo. Essa lista é construída a partir de discursos e lugares de enunciação muito distintos e também múltiplos. Os principais são:
1. As minhas próprias definições e opiniões sobre o feminismo;
2. A palestra de abertura da exposição das Guerrilla Girls, no Museu de Arte de São Paulo (MASP), transmitida ao vivo pela internet;
3. Conversas com um grupo de amigas/mães da escola do meu filho numa roda de conversa sobre gênero que se desdobrou em uma maravilhosa e rica conversa por email;
4. Uma busca realizada no Twitter selecionando a expressão o feminismo é;
5. Pesquisa no site http://hint.fm/seer/;
6. A leitura atenta e diária das minhas próprias redes sociais, onde principalmente jovens mulheres expressam-se sobre o que o feminismo;
7. Conversas com amigas;
8. Falas que escuto na rua diariamente enquanto faço compra no supermercado, espero o ônibus, pago contas no banco.
9. She's beautiful when she's angry (documentário, Netflix);
10. Alguns textos teóricos:
• Mulheres Negras – Moldando a teoria feminista, de Bell Hooks;
• Minha História das Mulheres, de Michelle Perrot;
• Para educar crianças feministas – Um manifesto, de Chimamanda Adichie;
• Feminista Ruim, de Roxane Gay;
• Teoria King Kong, de Virginie Despentes;
• A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista, de Sandra Harding;
• Feminismo e literatura no Brasil, de Constância Lima Duarte;
• Falando em Línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, de Gloria Anzaldúa;
• Um teto todo seu, de Virgina Woolf;
• Mulheres e Ficção, de Virginia Woolf;
• O tráfico de mulheres: notas sobre uma teoria radical das políticas
da sexualidade, de Gayle Rubin;
• O feminismo não é um humanismo, de Paul B. Preciado;
• Descolonizando o conhecimento, uma palestra-perfomance de Grada Kilomba;
• Por que não houve grandes artistas mulheres?, de Linda Nochilin;
• Contra a Tolerância, de Carla Rodrigues (publicado na revista Piseagrama).
NOTA 6
O feminismo está em constante diálogo com o mundo, com a vida das mulheres, em contextos sociais, culturais e econômicos muitos diferentes e desiguais. Não me interessa, neste trabalho, criar uma hierarquia entre os discursos, vozes e falas. Historicamente, a epistemologia ocidental (européia, branca e masculina) levou a cabo essa missão, definindo quais falas são mais importantes. Por isso, esta lista é uma colcha de retalhos coletiva onde não atribuo autoria às definições; e, apesar de tentar definir essa palavra, o que busco é muito mais investigar, a partir das minhas inquietações, o que essa palavra pode ser. Ao fazer uma pergunta, antes de materializar sua resposta no gesto da escrita, preciso silenciosamente ler – que é, para mim, um modo profundo, delicado e sensível de escuta.
*
Para escutar o poema sonoro em sua proposição original, acesse: umamulher.org/fmnsm
O áudio também está disponível aqui:
Flávia Péret é escritora e professora de literatura. Mestre em Estudos Literários pela UFMG, estudou Literatura Latino-americana na Universidade de Buenos Aires (UBA). Atualmente, é doutoranda em Educação na UFMG, com pesquisa sobre escrita e formas políticas de
resistência. Participou do programa Rumos de Literatura, na categoria Crítica Literária (2010/2011), promovido pelo Itaú Cultural e foi vencedora do Prêmio Folha Memória – Programa de Orientação de Pesquisa em História do Jornalismo Brasileiro, organizado pelo jornal Folha de São Paulo (2010). Publicou os livros História da Imprensa Gay no Brasil (Publifolha, 2011), 10 Poemas de Amor e de Susto (Edição independente, 2013), A outra noite (Edição independente, 2015) e Uma mulher (Edição independente+Guayabo, 2017). Desde 2009, atua como arte-educadora no campo da palavra e suas interseções com a imagem. Vive e trabalha em Belo Horizonte.
Agradeço à colaboração de Valquíria Rabelo (imagem) Tande Campos e Frederico Pessoa (poema sonoro).