revista ensaia/ n.2_junho2016/ PEÇA
Vou, com meu advogado, depor sobre o
Delegado Tobias [trecho]
Ricardo Lísias
Durante o segundo semestre de 2014, publiquei um conjunto de 5 ebooks, o Delegado Tobias, que formavam uma narrativa fragmentária e constituída por colagens de textos, imagens, documentos jurídicos e outros discursos, inclusive uma extensão em rede social em que a personagem principal interagia com os leitores.
Alguns meses depois, já em 2015, fui surpreendido com a denúncia de que a Polícia Federal havia aberto um inquérito a pedido do Ministério Público Federal: eu havia sido denunciado por falsificação de documento. A investigação prévia realizada por procuradores federais não notou que os documentos hipoteticamente falsificados na verdade faziam parte de uma obra literária, justamente o Delegado Tobias...
Assim, em 20 de outubro de 2015, estive no prédio da Polícia Federal na Lapa, em São Paulo, para dar declarações e me defender da acusação. Não vou repetir meus argumentos, mas quero destacar aqui uma sensação estranha. A certa altura, achei que tanto meu advogado quanto o delegado representavam um papel. Os dois sabiam que a situação era absurda (quero lembrar que não foi a Polícia Federal que cometeu a confusão, mas sim o Ministério Público Federal) mas precisavam realizar cada um o seu papel. Apenas eu, ali, não representava nada.
Com isso na cabeça, comecei a escrever a performance Vou, com meu advogado, depor sobre o Delegado Tobias. Apresento aqui as primeiras páginas do meu texto, que foi montado pela primeira vez no SESC Ipiranga, em São Paulo, nos dias 13, 14 e 15 de maio passados.*
*A performance foi dirigida por Janaína Leite e Alexandre dal Farra. O papel de delegado foi representado por Clayton Mariano. Alexandre Climachauska foi o advogado. Eu fui Ricardo Lísias.
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Ricardo Lísias (São Paulo, 1975) é escritor, autor dos romances "O livro dos mandarins" (Alfaguara, 2009), "O céu dos suicidas" (Alfaguara, 2012) e "Divórcio" (Alfaguara, 2013), entre outros, e do livro de contos "Concentração e outros contos" (Alfaguara, 2015). Foi finalista do Prêmio Jabuti de 2008 com "Anna O. e outras novelas"
(Globo, 2007), e do Prêmio São Paulo de Literatura, em 2010, com "O livro dos mandarins". Seu conto "Tólia" foi selecionado para a edição da revista inglesa Granta Os melhores jovens escritores brasileiros (2012). É mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp, doutor em Literatura Brasileira pela USP e atualmente realiza um estágio de pós-doutorado na Unifesp.
CENÁRIO
É uma mesa perpendicular ao palco. O delegado está sentado conferindo algo no computador e nos papeis que tem à frente. Atrás dessa mesa, outra menor, perpendicular à maior (paralela ao palco, portanto) com um espelho à frente. Sentado, o advogado está se arrumando. Na mesa diversos instrumentos de vaidade masculina: creme e aparelho de barbear, bacia de barbear, cortador de unha, perfume, esse tipo de coisa.
Dois microfones de pedestal à frente da mesa do delegado.
ATORES
Delegado: veste uma roupa casual, denotando porém certa tentativa de elegância, mas que não custe muito dinheiro. Está de tênis.
Advogado: o paletó está ao lado ou no espaldar da cadeira. A roupa é muito elegante e bem cortada. Calça um belo sapato.
Eu: eu mesmo.
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Eu e o delegado ficamos nessa primeira parte com o texto nas mãos. Não devemos esconder do público que estamos lendo, embora alguns trechos possam ser decorados. Todas as rubricas são lidas. No caso, L é lido por Lísias (Eu, em outros pontos da peça) e D vai na voz do delegado.
Na tela, imagens de câmera de celular. Percurso da rua até a frente da delegacia da Lapa. Enquanto a projeção se desenvolve, eu mesmo leio as instruções obrigatórias de segurança.
Depois, converso com o público, contando como era o prédio da polícia federal em São Paulo. (Na minha cópia da peça, devo ter algumas indicações do que dizer, na dos outros não é necessário constar nada).
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Luz na mesa. Delegado sentado, cadeira de Lísias iluminada como se ele estivesse lá. Advogado em seu espelho e bancada, começando a se paramentar. Lísias, no microfone mais a frente da cena, é o depoente e ao mesmo tempo o narrador numa interlocução direta com a plateia. Atenção, Lísias, olhe sempre para a plateia.
Delegado: É Lísias ou Lisías?
L: Respondo com segurança. Olho toda a sala com alguma lentidão. Nesse momento, o delegado está me medindo com os olhos, o que não percebo. Vou demorar a notar muita coisa.
Imagens surgem na tela, manipuladas pelo delegado em seu notebook. (São as imagens do inquérito verdadeiro).
L: O delegado me espera sentar, abre o inquérito que tem na mesa com algumas dobras na folha, justamente as páginas com as impressões do meu perfil no Facebook. Apontando com o dedo, pergunta:
Delegado: É esse o seu perfil no Facebook?
Eu: É.
Delegado: Foi o senhor que fez esses documentos?
L: Confirmo com um gesto altivo. O delegado se vira para digitar, mas suas feições deixam notar que ele percebeu meu orgulho infantil.
Delegado: O que são esses documentos?
L: Respondo que são parte do Delegado Tobias, um conjunto de ebooks. É o momento em que sinto mais orgulho durante todo o depoimento. Para simbolizar isso, deixo as costas retas e passo as mãos nos braços; gesto besta, mas que não me larga.
Delegado: Não, não são. São documentos colocados no Facebook.
L: Mexo-me na cadeira com um pequeno desconcerto e respondo que isso fazia parte do projeto literário chamado Delegado Tobias.
Imagem em destaque na projeção. Corta. B.O. Fim do prólogo.
Delegado vai para o microfone também.
Lísias aguarda a luz no advogado. Lê só quando a luz subir nele. O advogado continua se paramentando.
L: Com o canto dos olhos, noto os pés do meu advogado se mexendo. O sapato está muito bem engraxado. Estou de tênis.
Delegado: Quem é esse Delegado Tobias?
Eu: É a personagem principal de uma obra de ficção que publiquei no ano passado.
Delegado: E como é a história?
Eu: O escritor Ricardo Lísias (...)
Delegado: O senhor?
Eu:É um personagem com o mesmo nome que eu.
Delegado: Continue.
Eu: O escritor Ricardo Lísias é encontrado morto no quarto de um hotel. O Delegado Tobias começa as investigações apreendendo o notebook desse escritor.
Delegado: Certo. Prossiga.
[...]

Eduardo Climachauska (à esq.), Ricardo Lísias (centro) e Clayton Mariano. Foto: Divlgação.