top of page

Cachorro enterrado vivo

(Os três monólogos subsequentes devem ser interpretados pelo mesmo ator)

 

I

Cachorro

 

C - São 250 milhões de células olfativas. A memória entra pelo nariz – junto com o oxigênio. O cheiro dos pés, das mãos, da parte entre as pernas dela... O que eu era capaz de enxergar nunca passou de uma mínima fração daquilo tudo o que eu podia sentir, pelo focinho, quando ela se aproximava. Está tudo ficando distante agora. Sumindo... Junto com ela que, simplesmente, desapareceu do mundo. Todo aquele ar que a envolvia em odores está se apagando da minha lembrança. Memória de cão! O problema está no andamento da passagem do tempo e essa é uma grande diferença entre nossas espécies. As coisas vem e vão pelas minhas ideias – quase sempre partindo das minhas narinas. Outro dia, ele fez bolinho de chuva numa tarde de muito, muito sol. A casa estava pegando fogo! É o que se chama de verão em um país tropical – um tormento. Eu deitei no chão do banheiro porque lá é mais fresquinho. Sem forças, coberto com a quentura de tantos pelos, desmaiei profundamente – até sentir o cheiro da gordura fritando. Achei que fosse ela, enfim, de volta. Mas não. Era só outro aroma que ficou pelo ar como rastro... Ele deve estar sentindo falta dela também – a ponto de fritar bolinhos de chuva! Tenho noção, é claro, de que alguma coisa realmente séria aconteceu ou, quem sabe, ainda está acontecendo – já faz muito tempo que ela não volta para casa. Não sei dizer precisamente quanto tempo porque os dias e as horas ficaram confusas na ausência dela – pararam de passar e, de um jeito muito estranho, parecem se consumir simultaneamente. Como um cubo de gelo sólido e liquefeito – tudo no mesmo quadradinho. Ela me desatava todos os nós – agora até pulgas passeiam por mim. Estou fedendo como um sarnento qualquer – não passo agora de um sarnento qualquer. Uma única pulga pode morder mais de 400 vezes por dia seu hospedeiro. E elas se reproduzem como os insetos cretinos que, de fato, são. Ovo, larva, pupa, pulga. Dezenas, centenas, já, já, serão milhares delas. Estou faminto e ele diz que, quanto menos eu comer, menos vou cagar, então... A cada dia, menos comida. Continuo cagando. E ele deixa toda a merda dentro do meu quartinho. Toda a merda. E já não há mais jornais pelo chão – mijo mesmo pelas paredes. Isso até é legal! Não chega a ser uma compensação por todo o resto mas até que é legal... Quer saber qual é a filosofia de vida de um cachorro? Se uma coisa não dá para comer nem para foder, mije em cima dela. Foder nunca foi o caso para mim – desde meus cinco meses de vida, quando sofri aquela extirpação. Comparado com esse, entretanto, aquele sofrimento foi um peteleco nas orelhas... Perdê-la é muito mais complicado do que perder minhas próprias bolas – é a perda de uma parte extremamente mais intrínseca. Um buraco e tanto – como esses que agora estão sendo cavados na minha orelha, cheios de moscas incessantes. É... Esta é uma época de sucessivas novidades dolorosas – espaços vazios e carne carcomida. Se aquele idiota for tudo mesmo o que me sobrou – tenho é que rapar fora! Elaborar um plano de fuga – correr para o mundo. Não sinto cheiro de rua desde que ela se foi... Se eu conseguir chegar à rua, talvez, quem sabe, até encontre o rastro dela... Talvez, quem sabe... Antes de mais nada, preciso me livrar dessa corrente... Atado, assim, minhas possibilidade são ridículas. Não chego nem até a sala... Do quartinho de merda até a entrada da cozinha – esse é o limite do meu alcance agora. A casa tem duas portas de saída – cozinha e sala. A da cozinha posso ver daqui – mas ele só entra e sai pela porta da sala. Há cinco dias, ou cinquenta anos, que estou acorrentado aqui e ele só entra e sai pela porta da sala. Para me evitar, provavelmente... É... Eu não devia ter tentando pulverizar a panturrilha dele e rasgar em tirinhas o tendão! Não consegui me controlar – ele chegou perto demais. Ele tem aquele cheiro horrível! Ele tem aquela cara horrível! Ele costumava esfregar a cara horrível e o corpo fedido dele, nela – o que me deixava puto. Quando eu ia me deitar no colo dela, ela estava cheirando a ele. Porra! Esse idiota a contaminava. Foram quatro os ataques realmente graves que promovi contra ele – desde que ela se foi. Teve sangue em todos. Antes, eu só rangia os dentes. Ela me acalmava, me aquietava. Achava graça da minha embocadura. Mas agora, uma vez sozinhos por tanto tempo, eu e ele, nesse convívio de odores detestáveis, mandei ver, com toda força, minha mandíbula, na primeira vez, em seu antebraço. Em uma segunda ocasião, na mão dele. E, aí então, depois, nas costas, altura do rim. Agora, por último, na panturrilha - tentando chegar ao tendão para destroçá-lo e o aleijar. É uma pena que ela tenha me dado as vacinas antes de partir – seria ótimo poder transmitir uma doença mortal através de singelas gotas de saliva. O primeiro ataque aconteceu por volta do instante em que me dei conta, realmente, de que o desparecimento dela não era mais um episódio circunstancial de ausência – uma ida ao banco, ao supermercado, um happy hour com as amigas. Não sei dizer em horas, dias... Mas ela encheu meu prato de comida, trocou a água, limpou o quartinho... Me pegou no colo à força – me livrei, corri para o prato. E ela se foi. Pela porta da cozinha – que consigo ver daqui, mesmo acorrentado. Passou um tempo e não voltou. Mais tempo. Mais tempo. O prato se esvaziou. Ele entrou. Saiu. Eu molhei o jornal no chão do quartinho... Ele entrou, se trancou no quarto deles – não me deixou entrar. Não me olhou na cara – o que até fazia sentido porque, sempre que ele tentava me olhar nos olhos, eu lhe mostrava os dentes. O tempo continuou passando. A água acabou. Eu caguei, mijei. Ele entrou e saiu outra vezes sem se dar conta de mim. O tempo. A fome. A sede. A imundície. Tudo ia surgindo em mim – em volta de mim. Tudo, menos ela. E, então, ele resolveu se aproximar. Encheu o prato, a tigela de água. Recolheu os jornais e estendeu outros limpos pelo chão do quartinho. Não me olhou nos olhos mas me chamou pelo nome... Paulo César! Paulo César! E eu, imediatamente, avancei sobre ele! Nhacccc! Consegui prendê-lo pelo antebraço. Ele urrou. Eu me senti aliviado. Achei que fosse conseguir matá-lo. Mas ele lutou e se desvencilhou... Saiu correndo e fechou a porta do quartinho... Me deixando preso. No isolamento, tive tempo para pensar. Tive tempo para me acalmar. E para concluir o que era evidente - não foi muito inteligente, da minha parte, mordê-lo bem na hora em que ele se dava ao trabalho de resolver ao menos alguns dos meus problemas... Mas acontece que ele disse o que não devia. Sou um animal sentimental, me apego facilmente ao que desperta o meu desejo. Paulo César! Paulo César! Come aí... Ela não vai voltar mais – vamos ter que dar um jeito nessa vida, só nós dois. O segundo ataque foi quase por engano... Quando ele me soltou do quartinho – depois de me manter cativo por, sei lá, milhares de séculos até onde pude calcular – eu estava disposto a manter o controle de minha ferocidade. Temporariamente, estrategicamente. Durante o aprisionamento, quase morri de tanto latir, uivar, grunhir, vociferar, arranhar a porta, arrancar com as unhas a tinta das paredes. Fui sumariamente ignorado – friamente esquecido. Não morri de fome, nem de sede, nem de exaustão mas foi por muito pouco. Então, percebi que tinha que ficar manso até que ela voltasse para casa... Quando ela voltasse, eu poderia estraçalhá-lo... Ela olharia o meu estado lastimável e compreenderia meus motivos. Mas até lá... Tinha que ser um docinho de cachorro com aquele idiota transmutado em carrasco ferido! Ele me deixou sair – não limpou as merdas acumuladas mas me deu comida e água. O tempo continuou me afastando do tempo em que ela estava presente – quando havia muito mais do que comida e água nesse mundinho doméstico para mim. Havia bolas jogadas para que eu as pegasse de volta. Havia cosquinhas na barriga. E regulares e bem-aventurados passeios matinais! Tudo foi ficando para trás e, um dia, ele entrou pela porta da sala, empunhando uma garrafa, despejando tudo o que tinha dentro de si, goela a fora... Sentou-se no chão, em meio a uma poça do que antes lhe nauseava. Fui até lá e conferi o gosto e o sabor do seu vômito. Ele me afagou a cabeça. Num reflexo, mordi sua mão. Pensei rápido e me escondi embaixo do sofá... Ele chorou. Chorou. Não se levantou. Não correu atrás de mim. Não tentou se vingar. Quando voltou a si, novamente, repôs a comida no meu prato. Pude ver que a mão dele tinha a marca inchada e roxa dos meus dentes. Ele colocou um pouquinho de nada de comida, um pouquinho de nada de água e sorriu para mim – antes de sair pela porta da sala, sem limpar a minha merda, nem o próprio vômito. No terceiro ataque, achei que ele estivesse morto. Atirado no sofá de bruços, imóvel, exalando uma podridão bem maior que a habitual. Eu mordi, ele respirou. Mordi com mais força, ele levantou. Filho da puta! Paulo César, seu filho da puta! Tirou o pau para fora e mijou em cima de mim – na sala de estar. Essas pequenas coisas sujas são, para mim, os principais indícios de que ela talvez nunca mais volte. Os montes de merda, a poça seca de vômito, a mancha de mijo dele no tapete... Se ele estivesse esperando ela voltar, não seria assim tão nojento... Não é possível que ele esteja, simplesmente, largando tudo assim, neste estado lastimável, para que ela tenha trabalho, muito trabalho, quando voltar... Ela sempre gostou das coisas arrumadinhas... Era, aliás, esse o ponto em que mais frequentemente discordávamos... As coisas nos seus devidos lugares... Eu sempre achei interessante, espalhar umas paradas pela casa... Papel higiênico... Roupas que pegava no cesto que ficava na área, em frente ao meu quartinho... Sei lá... Um pouco de desordem me caía muito bem ao ânimo... Mas claro que diante de caos que ele instaurou nada disso faz mais sentido. O quarto e, até agora, último ataque, esse que me rendeu o acorrentamento foi por puro desalento. Eu olho em volta agora e não sei mais o que posso fazer da minha vida. Comer o pouco que ele me serve, beber o pouco que ele me dá. Cagar o que consigo, mijar o que posso. Latir, uivar, grunhir, vociferar, arranhar as portas, arrancar com as unhas a tinta das paredes. Tudo isso, praticamente nada. Coçar as pulgas que vieram não sei de onde mas tomam conta de mim agora... E essas moscas... Esses buracos na minha orelha... Assustador. Muito assustador. Muito doloroso. Usei o restinho das minhas forças para abocanhar a panturrilha dele.... Ele me chutou. Me acorrentou. Tudo isso, como sempre, sem me olhar nos olhos... Eu e ela, nós ficávamos por muito tempo nos olhando assim – olhos de um vidrados nos olhos do outro. Ela estalava os dedos e eu corria para junto dela. Ela tinha uns 487 mil cheiros diferentes, todos excelentes... Pausa breve, ele escutou alguma coisa. Ele voltou para casa. Dá para sentir o cheiro antes mesmo que atravesse a porta. Fétido. Por que ela não volta? Por que ele continua voltando? 

 

II

Um rapaz

 

R – Vinte reais paga o serviço? Eu respondi – Vinte e cinco. Vinte e cinco paga! E ele disse simplesmente – Pode ir abrindo a cova que eu vou lá pegar o bicho... Era o quê? Umas três horas da tarde... Mas não estava muito quente - não ia ser difícil. Quer dizer... Para mim, não ia ser nenhum grande problema, cavar um buraco no terreno... Para ele, deveria estar sendo horrível! Eu já tinha passado por uma situação daquelas – não era nada bom. Meu cachorro se chamava Porsche – porque eu adoraria ter um carro desses. Mas, convencido de que jamais mesmo teria grana para isso, peguei um cachorro vira-lata, na rua, e dei a ele nome de Porsche. O Porsche era pretinho, pretinho... Brilhante até. Como o carro dos meus sonhos! Para mim, foi um dia tristíssimo aquele em que, sem mais nem menos, ele amanheceu morto. Esturricado. Um dia horrível. Ele era muito divertido... Um arruaceiro, como eu... Ele era a minha cara! Engraçado é que, pensando agora, não consigo me lembrar o que foi que eu fiz com o corpo dele... Deve fazer uns dez anos isso! Não consigo me lembrar... Apagou completamente da minha mente. Me lembro dele imóvel. Ainda quentinho. Sem ar, sem vida. E nada mais – devo ter tomado um porre tão grande que meu cérebro foi afetado! Vinte e cinco paga! Pode ir abrindo a cova que eu vou lá pegar o bicho... E eu cavei o buraco. Então, ele voltou. Me entregou o cachorro pela coleira, me deu a grana, virou de costas e se mandou. Eu não entendi nada... Fiquei sem reação. É para enterrar o cachorro vivo, então? É isso? Porra, eu devia ter pedido umas cem pratas! Olha para esse bicho... Tá no osso. Deve estar com alguma doença e, ao invés de sacrificá-lo, o dono resolveu o problema me pagando vinte cinco reais por um enterro de corpo vivente... Será que rola? Será que dá para fazer? Vem cá, vem cá... Entra aqui... Isso... Deita aí. Deita aí, cachorro! Olha só... Coube direitinho... Você não faz a menor ideia, não é? Tá achando esse buraquinho na terra aconchegante, tá? Caralho! O desgraçado está todo podre mas tem forças para ranger os dentes... Como será que isso funcionaria, hein? Se eu começasse a cobrir você de terra... Você ia ficar aí parado ou ia sair correndo? Você tem pernas para sair correndo? Esquelético desse jeito... Eu posso ir parar na cadeia por fazer uma coisa dessas... Parar na cadeia pela merreca de vinte e cinco reais! Mas alguém precisaria se importar com você para me colocar na cadeia! E, ao que tudo indica, não tem ninguém no mundo ligando para sua existência, cachorro... Esse orelha cheia de ovo de mosca... Fedido para caralho! Você fez alguma coisa ruim ou está apenas morrendo de doença, velhice? Sei lá... Caralho! Queria me lembrar o que foi que eu fiz com o corpo do Porsche... Será que eu enterrei? Será que cavei uma cova e coloquei ele lá dentro, como estou fazendo com você agora? Só que ele estava morto – completamente morto. Eu gostava do meu cachorro. Ele era gordinho, limpinho... Não era, assim, um farrapo canino como você. Que tipo de animal você deve ser para merecer essa tratamento? Ou, então, que tipo de animal era aquele cara que cuidou de você como se fosse... Sei lá! Um pano de chão. O Porsche e eu, nós éramos assim... Muito ligados. Ele era meu companheiro! Uma vez, eu briguei com um cara... Um idiota que me provocou! Eu dei um murro no queixo dele, ele desabou no chão... Comecei a dar uns chutes bem no nariz dele... O Porsche estava comigo, assistindo a tudo... Era uma rua vazia, de madrugada... Ele ouviu um barulho que eu não ouvi porque estava chutando a cabeça do cara... Ele ouviu e latiu – como se fosse para me avisar que estava vindo alguém. A gente saiu correndo – lado a lado. Deixamos o cara lá, caído... E nos mandamos... Podia ser a polícia, podia ser só outro vagabundo... De qualquer jeito, não seria bom, para mim, ser pego naquela situação... O cara estava todo arrebentado! Mas o Porsche deu o alerta e escapamos da cena do crime! Bons companheiros... Será que você tem nome, cara? Será que seu nome é lixo? Molambo? Zumbi? Zumbi está muito na moda... Só que essas costelinhas salientes deixam à vista sua respiração... Você não é um morto vivo... Pode estar prestes a morrer... Mas ainda é um ser vivo. Com quantas pás de terra eu teria que te cobrir para que você não conseguisse se mexer e sufocasse até o fim? Quer morrer? Isso seria melhor? Está sofrendo? A cara daquele seu dono... Será que eu me lembro da cara dele? Eu devia chamar a polícia! E entrega-lo! Eu devia chamar a sociedade protetora dos animais! Posso tentar salvar a sua vida... Ou, então, executar a tarefa para a qual fui – pessimamente – pago. Eu posso fazer o que eu quiser com você agora, cachorro! Você quer viver ou quer morrer? Eu larguei aquele cara lá, naquela rua vazia, de madrugada... Será que ele sobreviveu? Será que eu sou um assassino? Eu senti uma dor tão grande quando encontrei o Porshe morto na cozinha – naquela manhã de uma terça- feira qualquer. Uma dor tão grande. Não sou um homem sem coração. Nunca mais quis saber de outro cachorro – ele não era substituível. Acho que nunca mais eu nem cheguei perto de outro cachorro... Até agora... Para não ter que lembrar do Porshe... Mas você, assim, tão esculachado não lembra em nada o meu Porshe... Você mal parece um ser da sua espécie. Que tipo de monstro é você, hein? E eu? Será que eu sou o tipo de monstro capaz de te enterrar vivo? 

 

III

O dono do cachorro

 

D – Quanto tempo a mente humana leva para gravar uma memória? Converter um acontecimento em memória? É todo tempo de duração do acontecimento ou será apenas o instante final? O segundo de saída... Será que é nesse momento – o finalzinho – que o cérebro transforma o presente em uma imagem na lembrança? Uma imagem que – dali por diante, do fim em diante, uma vez já fora do tempo – poderá ser revivida inúmeras vezes – indefinidamente – como um gozo ou como um tormento. Ou será que – enquanto vivemos – cada milissegundo de cada segundo vai sendo, imediatamente, apreendido e transmutado em passado dentro da nossa cabeça? Um processo contínuo ou um recurso desesperado anti-perda? Existe um modo geral de funcionamento ou é sempre, sempre, uma especificidade? A memória. Eu queria dizer que me lembro bem de tudo. Mas, na minha cabeça, não é bem assim que as coisas se dão... “Esqueça os meses, esqueça os seus finais. Esqueça os finais...” Ela vivia me dizendo... Mas as engrenagens dos meus pensamentos sempre reconstituem as lembranças a partir do modo como as coisas terminaram... Eu começo sempre a lembrar pelo fim. Perco todos os começos, com o tempo. Talvez, isso seja uma coisa, absolutamente, minha – como uma impressão digital ou um fator X. Agora, tudo o que consigo me lembrar é que ela foi embora e me deixou um cachorro que sempre me detestou – Paulo César. Nome estúpido. Paulo César. Eu me chamo Paulo Vítor e tenho um cachorro chamado Paulo César. Quer dizer, eu tinha... Quer dizer, ela tinha... O que eu tinha era o amor dela... Eu tive, por um tempo. Agora, não tenho mais nada. Só a minha própria vida, completamente, fora dos eixos. Essa casa imunda... Vazia. Nem o Paulo César está mais por aqui. Eu já bebi, cheirei e engoli todo o tipo de coisa mas sou forte para caralho... Sempre acordo depois das super doses excessivas. Sempre acordo intacto. Em meio a poças de vômito ou cortes no rosto, depois de despencar pelo chão... Mas inteirinho! O corpo aguenta muito mais do que é possível supor à princípio. O corpo aguenta continuar apesar da cabeça não fazer mais sentido algum. Será que, a essa hora, ele já está morto? Paulo César, filho da puta! Mandei, literalmente, cavar a sua cova! Em pensar que fui eu que o encontrou, quando era um filhotinho, vira-lata, um cãozinho mendigo, andando no meio de uma auto estrada... Não tinha muito carro passando, não posso dizer que ele estava na iminência de ser atropelado... Mas corria o risco, é claro... Andando, idiotamente, feliz pela estrada a fora, bem sozinho... Quando o coloquei dentro do carro, não estava pensando em ficar com ele, apenas resgatá-lo daquela situação de emergência. Mas acontece que cheguei em casa e ela o amou instantaneamente – perdidamente. A grande maioria das pessoas do mundo se derrete diante de filhotinhos! São tão cheios de partes minúsculas, tudo tão... Cuti-cuti. Mas ela odiava bagunça, odiava sujeira... Achei que fosse me dar o maior esporro quando tirei o vagabundinho de dentro do carro... Que nada! Não consigo mais me lembrar dele como um filhote. Deve ter um monte de fotos por aí, é claro... Mas não vou nem me dar ao trabalho de procurar porque ela estará em todas as fotografias, grudada nele, tenho certeza... Um cão feroz! Cresceu sendo assim. Minha mão ainda está inchada. Tem uma ferida inflamada nas minhas costas e minha batata da perna está doendo sem parar... Filho da puta! Estava fraco, fraquíssimo e, ainda assim, teve forças para me cravar os dentes! Aquele filho da puta, sempre me odiou incondicionalmente! Alheio a qualquer aspecto do conceito de gratidão. Ela era o único amor que compartilhávamos. Dividíamos. Disputávamos. Fui um imbecil pensando que ela não fosse demorar para voltar, justamente, por causa dele... Achei que, em um ou dois dias, estaria de volta porque não conseguiria ficar mais do que isso longe dele... Mas que nada! Como é que ela pode abandoná-lo assim? Não falo nem por mim... Mas como é que ela pode abandonar o Paulo César aos meus cuidados raivosos? Ele nunca, nunca fez nada que magoasse ela! Só cagava e mijava no jornal, dentro do quartinho de empregada... Não latia alto aqui dentro... Era só amor e devoção irracional e irrestrita – completamente diferente de como era comigo. Para mim era só patada! Sempre que eu fechava a porta do quarto, ele tentava me matar... Não era uma tentativa de morder, era vontade de me ver morto... Ela gemia alto, dentro do quarto... Com suas orelhas direcionáveis, o Paulo César era capaz de, em apenas 6 centésimos de segundos, localizar o ponto de origem de um som. Mas não entendia que não era sofrimento o que ela estava exprimindo com aqueles gritinhos... Quer dizer... Pode ser que ela tenha ido embora por estar sofrendo... Mas não, necessariamente, enquanto a gente transava... Não... Espero que não... Em que momentos será que ela sofria? Talvez esteja sofrendo agora. A melhor explicação para o desparecimento dela é um rapto. A mais plausível. Ou, simplesmente, a menos desconfortável para mim... Que ela não tenha ido por vontade própria... Que um homem, horrivelmente forte, a esteja mantendo em cativeiro, acorrentada, com pouca comida, pouca água. Apenas o suficiente para sobreviver. Já pensei em abdução também mas... Não! Abdução é um hipótese ridícula. Prefiro rapto. Pensando assim, nada disso, esse abandono, ganha qualquer contorno de um plano. É apenas uma brutal consequência da violência que ela sofreu – ainda pode estar sofrendo – presa em um quartinho sem janelas ou pontos de fuga. Obrigada a usar o chão para suas necessidades fisiológicas... Privada de decisão, impedida de ir e vir. Longe de mim à força – não por escolha. Ela não abandonaria o Paulo César por livre e espontânea vontade! Não abandonaria! Ele era o bichinho dela – eram tão, plenamente, íntimos. Por que ela o deixaria para trás? Ele andava ao lado dela na rua, sem coleira – atenciosamente. Ele a orbitava! Se ela me deixaria assim, sem qualquer nota de esclarecimento, já não sei dizer... Não tenho certeza. Mas ela era uma pessoa que tinha enorme prazer em argumentar. Então, fico pensado que, alguém que gostava tanto de discutir, discutiria antes de partir, não é? Escreveria alguma coisa, ao menos. Claro que haveria motivos para sumir... Ela teria alguns, eu teria alguns... O próprio Paulo César teria alguns... Ele, aliás, seria um excelente motivo para eu dar no pé... Filho da puta, irritante! Conviver, dentro da própria casa, com um ser sempre disposto a te arrancar um pedaço é um incômodo considerável. E, ainda por cima, havia o agravante da compaixão dela – exclusivamente, dedicada a ele, é claro. Se ela tivesse que escolher entre eu e o Paulo César... A questão é que ela não precisava escolher! Não tínhamos chegado a esse ponto – poderia continuar tendo nós dois – Paulo Vítor, Paulo César. Entretanto, desapareceu da minha vida e da dele. Todos os dias, eu vou ao Instituto Médico Legal e faço uma espécie de ronda mórbida pelos cinco maiores hospitais de emergência da cidade. Todos os dias, continuo sem encontrar qualquer resposta. Uma pessoa que evaporou no ar. Sem tirar um centavo do banco, sem levar sequer uma meia... Ou aquela camiseta branca – surrada, desbotada – estampada com uma foto do Michael Hutchence de peito aberto – que ela usava, ao menos uma vez por mês, para dormir, desde 1997. Eu fico tentando encontrar motivos para que ela tenha decidido se desvencilhar, assim, da vida inteira que levávamos juntos. Obviamente, a primeira coisa que me vem a cabeça é que ela possa ter se apaixonado por outra pessoa. Outro homem. Um estrangeiro com quem deixou o país... Mas não levou o passaporte, já verifiquei... Ele pode ser um criminoso, um fugitivo... Talvez tenham saído ilegalmente do Brasil... Ou, quem sabe, ela tenha se apaixonado por uma mulher. Mudado de nome – quem sabe até de sexo. Leva tempo para uma pessoa conseguir mudar de sexo... Eu pesquisei... O que será que aconteceu? Garrafas e mais garrafas diárias de Jack Daniel’s não tiram essa pergunta de dentro da minha cabeça. Que porra será que aconteceu com ela? Eu sempre achei que preferiria não saber caso, por exemplo, eu estivesse sendo traído ou, então, estivesse com os dias contados. Eu sempre me vi como o tipo de pessoa que escolheria não saber... Agora, no entanto, tudo o que quero é saber. E pode ser que isso jamais ocorra. Pode ser que eu morra na ignorância completa do destino dela. Se existiu livre arbítrio. Se existiram razões ou culpas. Forças ocultas ou a ação de uma atrocidade escabrosa. Quantos quilômetros nos separam agora? Você pode medir a distância através do espaço ou através do tempo. Quantos mais dias se passam, mais longe um do outro nós ficamos. E se ela entrar por essa porta agora e perceber que aquele filho da puta de quatro patas não está mais aqui? Será que vai virar de costas e sair correndo me amaldiçoando definitivamente? Se perguntar o que aconteceu com ele, o que eu vou dizer? Você não me deixou escolha, querida. Eu tinha que reagir de alguma maneira. Tinha que me vingar... Devido ao modo como a minha memória funciona, não consegui me apegar às boas lembranças que você – aparentemente – havia deixado para trás. Tudo o que ficava martelando na minha cabeça era essa final sem desfecho no qual fui abandonado sem qualquer informação. Ele me mordeu várias vezes, depois que você sumiu. O que, antes, era apenas uma ameaça – a vontade dele de me triturar – tornou-se real. Ele me culpava pelo seu desaparecimento – dava para ver isso naqueles olhos furiosos. Então... Eu mandei enterrá-lo vivo. Eu mandei enterrá-lo vivo. Paulo César. Paulo César... Eu mandei enterrá-lo vivo. Meu Deus, o que foi que eu fiz! Eu mandei enterrá-lo vivo! Eu paguei para que o enterrassem vivo... Se ela voltar, não vai mais poder me amar... Se tiver mesmo sido raptada e for solta ou conseguir se livrar, vai voltar para casa e descobrir o que eu fiz... Caralho! O que foi que eu fiz! Paulo César, filho da puta! Eu posso limpar tudo... Eu posso deixar a casa toda em ordem... Mas... Já faz o quê... Aproximadamente, nove horas que eu saí daqui com ele na coleira... E mandei o cara jogá-lo numa cova! Ah! Minha querida, você não iria reconhecê-lo... Ele não era mais o cachorro que você amou e cuidou... Eu acabei com ele! Muito antes de levá-lo até aquele terreno baldio. Eu fui acabando com ele, aos poucos... Fiz com ele quase a mesma coisa que fizeram com você, no cativeiro... Agora, já não é assim tão reconfortante imaginá-la trancada em algum quartinho escuro, abafado e fedido, querendo voltar para casa... A casa caiu. Minha querida, a culpa é toda sua! Toda vez que eu entrava no Instituto Médico Legal, procurando por uma mulher branca, de trinta e cinco anos e me diziam que um corpo com essas características havia sido encontrado... Todas as vezes, que eu tive que olhar dentro de um saco, para ver se o cadáver era seu... Eu enlouquecia um pouco. Eu perdia em sensibilidade e ganhava em desvario. Então, tinha que voltar para casa e enfrentar aquele cachorro rangendo os dentes... Babando de ódio... Você não iria reconhecê-lo com as costelas aparecendo... As orelhas... Com bicheira! Eu mandei enterrá-lo vivo porque, assim, tenho que parar de desejar que você volte para casa, meu bem... Agora, você não pode mais voltar – seja lá o que tenha acontecido a você. Não importa mais. O que eu faço comigo agora? Ele tira a camiseta e veste uma camiseta branca, surrada estampada com uma foto do Michael Hutchence. Dormir não significa mais nada para mim, não tenho descanso. Nem fome, nem sede. Não tomo banho mais banho, nem ouço mais música. Ele latia constantemente – quando eu chegava perto, dava para sentir o ódio. Mas a maior parte do tempo, eu podia entender, perfeitamente, que era por amor que ele estava rosnando... De dor. Filho da puta! Essa dor não tem enterro... Por que ela não volta? Por que eu não desapareço? 

 

 

 

Daniela Pereira de Carvalho  é dramaturga e aluna do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Unirio. Integrou a Cia Os Dezequilibrados, onde realizou espetáculos como Vida, o Filme”, “Dilacerado” e “Lady Lázaro”.  É autora, entre outras, das peças “Não Existem Níveis Seguros Para o Consumo destas Substâncias” – texto premiado pela APTR em 2006, no Rio de Janeiro, “Tudo é Permitido”, “Por Uma Vida Um Pouco Menos Ordinária”, “Renato Russo – O Musical” e “Contra o Vento”.

Anchor 2
bottom of page