Notícia 409
tradução e nota introdutória de Leonardo Munk
Bastante encenado no Brasil a partir de meados da década de 1980, o alemão Heiner Müller é conhecido por textos como Hamlet-Máquina, Quarteto, A missão, entre outros. Sua produção poética, da qual Notícia 409 faz parte, por outro lado, é pouco difundida, com poemas esparsos surgidos aqui e ali. Contudo, apesar de publicado em um volume dedicado à poesia do autor, o texto em questão poderia ser inserido sem mais problemas em boa parte de sua produção para teatro, notadamente aquela produzida a partir do final da década de 1970. Defini-lo enquanto gênero, portanto, não é algo que sirva a essa brevíssima nota introdutória.
Como muitos outros textos escritos por Müller ao longo de quase cinco décadas de atividade literária, Notícia 409 é de difícil classificação. O que interessa aqui, e que certamente contribui em muito para sua inegável potência exatos vinte anos depois de escrito – dois meses depois, em dezembro de 1995, Müller viria a falecer vitimado por um câncer – é sua inegável riqueza imagética que, propondo de maneira obsessiva uma interlocução com a história da Europa, e da Alemanha, dos últimos dois séculos, é quase que integralmente obtida a fórceps. O método utilizado é o da montagem, que, transitando do texto à imagem, e vice-versa, propõe uma experiência de choque. O diálogo com a política é sempre imperativo, embora nunca óbvio.
Em Notícia 409, vai-se do macro ao micro sem a menor cerimônia, indo do apocalipse alemão previsto por Franz Kafka, e vivido por Paul Celan, até a barbárie considerada como fato sensacionalista. Extrair do cotidiano mais banal, e mesmo perverso, faz-se a missão desencantada do texto ao exaltar, por exemplo, Pier Paolo Pasolini, aquele que, em Teorema, insere um anjo sem asas no seio da família burguesa, e que havia sido violentamente assassinado vinte anos antes. Crítico feroz do capitalismo, talvez o mais perverso espectro de todos – não é complicado considerar que, ao contrário do fascismo e do comunismo, temas recorrentes em Müller, ele continua a nos assombrar –, Pasolini foi o promotor de um cinema de poesia, combatido com ódio por uma sociedade conservadora que o via como excrescência. Viu-se o que se sucedeu à Itália nos anos subsequentes. ‘Não há mais lugar para a literatura’ em um tempo onde as relações humanas valem muito pouco, cada vez mais soterradas pela lógica de mercado. Muitas são as referências e pistas incrustadas em Notícia 409, desafiando o leitor a buscá-las – se é que isso é possível –, ou a simplesmente compartilhar a beleza das imagens, pois elas precisam, como diria Ezra Pound, mesmo expondo a violência e a destruição, nos dar a aquela súbita sensação de liberdade. E, afinal, como aparece em um poema de um jovem Müller, de 1955, “(...) o belo significa o possível fim dos horrores.” [1]
-- Leonardo Munk
Notícia 409
Heiner Müller, em tradução de Leonardo Munk [2]
Se sua canção não mais ajuda a viver
Ajuda pelo menos a morrer
(Brentano)
O céu promete um belo dia Ele começa
Com a leitura dos jornais no bar do hotel
Um sobrevivente descreve um banho de sangue
EU ESTAVA SOB EUNÃOSEI QUANTOS MORTOS
COM MEDO DE QUE UM ESTIVESSE VIVO E SE MEXESSE
OU SE PUSESSE A GRITAR SOBRE MIM ELES
ATIRARAM
EM TUDO QUE SE MOVIA OU FALASSE ALTO
FELIZMENTE ESTAVAM TODOS MORTOS
A sorte precisa lidar com poucos recursos
Viver porque todos estão mortos um sonho da humanidade
Tempo ocioso Um dia me joga no outro
Axel Manthey está morto Se deveria escrever comédias
Viver nessa escura massa humana
Com idiotas felizes diante do monitor
Hoje à noite em sonho eu fui Acteão
Eu fui caçado por sete mulheres
Uma atriz as conduzia
Por florestas e campos nós pisoteamos as flores
Elas me caçaram com um laço de arame
Eu incomodei alguns amigos com perguntas
Sobre minha nova peça EU ESTOU IRRITADO
Disse o mais educado Os outros se calaram
Minha mulher me perguntou VOCÊ PRECISA DISSO
Gründgens come com Göring o caçador e o colecionador
No porão a Gestapo dá
Ao comunista Hans Otto aula de canto
EU SOU ATOR NÃO POVO diz Hamlet
Quando Laertes se torna político Ele por seu lado
Sabe como se vira e lida em
Conversa com assassinos pelo amor à arte
EU PENSO EM TER UM GRANDE SONO
Foi a última coisa que se escutou dele
HAMLETWALLENSTEIN a quem seus assassinos
Precisaram quebrar as pernas porque o caixão
Era muito curto Nossos Hamlets
Na caverna de Platão Althusser por exemplo
Um comunista massageia sua mulher Sempre
Ela enrijeceu sua nuca contra seu
Ceticismo fundamental sempre ele queria
Dizer um grafite no muro da école normale
Ser um trabalhador braçal
OH MÃE MÃE
O QUE VOCÊ FEZ
Ou Pasolini
ME DÁ O SEU CU PELOSI EU
QUERO SEU CU SUJO FILHO DA ITALIA
PUTA DE MARLBORO E COCA-COLA
ME DÁ O SEU SUJO
Bodas de sangue
Com a turma que traz o futuro
Pelo capital tatuado sobre seus ombros
O alvorecer de uma noite A noite
Do alvorecer
Então Pelosi coloca a engrenagem em marcha
E passa o carro por cima do proprietário
AGORA VOCÊ ESTÁ UNIDO PAOLO AO SEU
ITALIANO
Ou São Martim criatura da floresta e anão de jardim
De calças curtas esperando pelo Führer
... SUAS MARAVILHOSAS MÃOS JASPERS
Em sua Floresta Negra onde Kafka o judeu errante
Viu o caçador Graco o morto que
Não aprendeu a morrer o mestre da Alemanha
Que lava suas mãos no sangue de seus animais
Afinal ele sabia São Martim
Desde que as forças do centro cruzaram o Jordão
Que o solo é o abismo a vida um salto
Pois Deus está morto seus anjos órfãos
Não emprestem mais suas asas
Seu esqueleto gira no espaço
No bar do hotel se entedia um hóspede bêbado
Uma garçonete ela não está de serviço e tem permissão
De se sentar no bar com a morte por câncer de sua mulher
Então eles conversam sobre cães
EU GOSTO DE CHOW-CHOWS diz a garçonete
PORQUE ELES SÃO TÃO PEQUENOS POR FAVOR ONDE ESTÁ MINHA BEBIDA grita o bêbado I HATE DOGS
THEY TOOK MY TIME WHEN I LIVED WITH MY
WIFE
AND SHE’S DEAD NOW AND THE DOGS TOOK MY
TIME
Ontem eu vi Teorema
EU ESTOU MORTO PARA ESSA SOCIEDADE
Diz o capitalista cansado em uma estação de trem
Como acabará o mundo se o dinheiro ficar cansado
O jovem prostituto já se despe na plataforma
Em meio aos passageiros que vão para o nada
O mundo é descrito não há mais lugar para a literatura
Quem será arrastado de seu banco de bar por uma rima bem-sucedida A última aventura é a morte
Eu voltarei fora de mim mesmo
Um dia de outubro sob a chuva
notas
Notiz 409
Heiner Müller
Whenn schon denn Lied nicht leben hilft
So hilft es doch zum Tode
(Brentano)
Der Himmel verspricht einen schönen Tag Er beginnt
Mit der Zeitungslektüre in der Hotelbar
Ein Überlebender beschreibt ein Blutbad
ICH LAG UNTER ICHWEISSNICHT WIEVIEL TOTEN
MIT ANGST DASS EINER LEBT UND BEWEGT SICH
ODER FÄNGT AN ZU SCHREIN ÜBER MIR SIE
SCHOSSEN
AUF ALLES WAS SICH REGTE ODER LAUT GAB GLÜCKLICHERWEISE WAREN ALLE TOT
Das Glück muß sich nach der Decke strecken
Leben weil alle tot sind ein Menschheitstraum
Leerzeit Ein Tag wirft mich dem andern zu
Axel Manthey ist tot Man sollte Komödien schreiben
Leben in diesem trüben Menschenbrei
Mit glücklichen Idioten vor dem Bildschirm
Heute nacht im Traum war ich Aktäon
Ich wurde von sieben Frauen gejagt
Eine Schauspielerin führte sie an
Durch Wald und Feld wir zertraten die Blumen
Sie jagten mich mit einer Drahtschlinge
Ich belästigte einige Freunde mit Fragen
Nach meinem neuen Stück ICH BIN IRRITIERT
Sagte der höflichste Die andern schwiegen
Meine Frau fragte mich BRAUCHST DU DAS
Gründgens speist mit Göring dem Jäger und Sammler
Im Keller erteilt die Geheime Staatspolizei
Dem Kommunisten Hans Otto Gesangsunterricht
ICH BIN SCHAUSPIELER KEIN VOLK sagt Hamlet
Gespräch mit Mördern aus Liebe zur Kunst
ICH DENKE EINEN LANGEN SCHLAF ZU TUN
War das letzte was man von ihm gehört hat
HAMLETWALLENSTEIN dem seine Mörder
Die Beine brechen mussten weil der Sarg
Zu kurz geraten war unsere Hamlets
In Platons Höhle Althusser zum Beispiel
Ein Kommunist massiert seine Frau Immer schon
Hat sie den Nacken steif gemacht gegen seine
Grund legende Skepsis immer schon wollte er
Sagt ein Graffito an der Mauer der école normale
Ein Handarbeiter sein
OH MUTTER MUTTER
WAS HAST DU GETAN
Oder Pasolini
GIB MIR DEINEN ARSCH PELOSI ICH
WILL DEINEN DRECKIGEN ARSCH SOHN ITALIENS
HURE VON MARLBORO UND COCA COLA
GIB MIR DEINEN DRECKIGEN
Blutige Hochzeit
Mit der Klasse die die Zukunft trägt
Auf Schultern tätowiert vom Kapital
Die Morgenröte einer Nacht Die Nacht
Der Morgenröte
Dann legt Pelosi den Gang ein
Und fährt das Auto über den Besitzer
JETZT BIST DU VEREINT PAOLO MIT DEINEM
ITALIEN
Oder St. Martin Waldschrat und Gartenzwerg
Im kurzen Leder wartend auf den Führer
... SEINE WUNDERSCHÖNEN HÄNDE JASPERS
In seinem Schwarzwald wo Kafka der ewige Jude
Den Jäger Gracchus gesehn hat den Toten der
Das Sterben nicht gelernt hat den Meister aus Deutschland
Der sich die Hände wärmt im Blut seiner Tiere
Immerhin hat er gewußt St. Martin
Seit die Mitten über den Jordan gehn
Daß der Boden der Abgrund ist Leben ein Sprung
Denn Gott ist tot seine verwaisten Engel
Leihen ihre Flügel nicht mehr aus
Sein Skelett kreist im Weltraum
In der Hotelbar langweilt ein betrunkener Gast
Eine Serviererin sie hat dienstfrei und darf
An der Theke sitzen mit dem Krebstod seiner Frau
Dann unterhalten sie sich über Hunde
ICH MAG CHOWCHOWS sagt die Serviererin
WEIL SIE SO KLEIN SIND BITTE SEHR WO BLEIBT
MEIN DRINK schreit der Betrunkene I HATE DOGS
THEY TOOK MY TIME WHEN I LIVED WITH
MY WIFE
AND SHE'S DEAD NOW AND THE DOGS TOOK MY
TIME
Gestern habe ich Teorema gesehn
ICH BIN GESTORBEN FÜR DIESE GESELI.SCHAFT
Sagt der müde Kapitalist auf dem Bahnhofsstrich
Wie soll die Welt enden wenn das Geld müde wird
Der Strichjunge zieht sich schon auf dem Bahnsteig aus
Mitten unter den Reisenden ins Nichts
Die Welt ist beschrieben kein Platz mehr für Literatur
Wen reißt ein gelungener Endreim vom Barhocker
Das letzte Abenteuer ist der Tod
Ich werde wiederkommen außer mir
Ein Tag im Oktober im Regensturz
Heiner Müller nasceu em 1929, na Alemanha. Residente na Berlim Oriental, tornou-se o mais notável dramaturgo alemão do pós-guerra, sendo considerado possível herdeiro de Bertolt Brecht. A partir da década de 1970, contudo, afastou-se da herança brechtiana, contribuindo para a repercussão daquilo que seria posteriormente nomeado por Hans-Thies Lehmann de Teatro pós-dramático. Faleceu em dezembro de 1995.
Leonardo Munk é professor adjunto da Unirio e dedica-se a estudar a relação dos estudos teatrais com a literatura, o cinema e as artes plásticas. Traduziu, com Livia Krykthine, textos de autores latino-americanos para o teatro: Atribulações de um autor desconcertado, ou a saga do espelho constante, do colombiano José Assad (PERIFÉRICO II: dramaturgias latino-americanas, 2013) e As histórias que se contam os irmãos siameses, dos mexicanos Luis Mario Moncada e Martín Acosta (PERIFÉRICO IV: dramaturgias latino-americanas, 2015).