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Albert Cossery ou Uma palavra para o dia chegar ao fim

Ricardo Cabaça

(Enquanto o público entra ouve-se um som de mar, gaivotas, passos na areia, caneta a escrever em papel. Quando o público estiver sentado começa a projeção de uma praia, sempre com o mar como fundo central. O cenário é areia em praticamente todo o palco. Ligeiramente ao centro e deslocado para a direita, uma cadeira de praia e um chapéu-de-sol que está posto de forma a esconder o ator. A luz deve estar centrada no chapéu e nalguns pontos de areia. A luz deve vincar o amarelo de praia e sobretudo, o entardecer.)

 

1.

 

Os meus dias acontecem nesta areia, geralmente descalço e com as mãos bem enterradas.

Quero imaginar cada grão como um só, cada um com a sua personalidade e história.

Encontro a diferença em cada um deles, procuro aqueles que conheço, mas o vento leva-os para mais longe e noutro espaço, já não os reconheço.

Este é o meu quintal, onde acaba a casa está a areia e onde acaba a areia está o mar.

 

(Levanta-se sem se virar para o público. Tem o gravador na mão e esporadicamente fala para o gravador.)

 

Também pode ser ao contrário, mas é isto que vejo da janela da minha casa. Sento-me à beira mar e deixo as pernas dentro de água.

Costumo ficar assim durante horas. Leio, penso, recordo.

Sou também a memória dos outros.

Aqui vejo o mar ao fundo do meu quintal, mas numa memória que não é totalmente minha, vejo areia a toda a volta, como se fosse uma praia infinita em que o mar secou há muito ou então está tão longe que desisto de ir ao seu encontro.

Nessa memória o vento e areia cobrem todo o meu corpo com violência. Assim são os meus dias, a imaginar que também posso ser a vida dos outros.

De vez em quando vêm para aqui turistas cheios de pressa, querem fazer tudo de uma só vez. Rio deles, são simpáticos e gentis, mas só posso rir da sua pressa.

Convido-os para se sentarem comigo e verem como o mar não muda de sítio nem tem pressa para fazer desaparecer a areia. Faço-lhes sinal para sentirem a areia nos pés, o tempo a entrar e ficar dentro deles, como isso pode mudar a sua visão do mundo.

Acusam-me de ser preguiçoso, de nada querer fazer.

Não sou preguiçoso,

sou ocioso,

gosto de refletir, só isso.

Não estou louco quando digo que consigo ficar tão parado que o meu corpo acompanha o movimento da terra e com ela faz a rotação.

Avanço lentamente, muito lentamente, mas avanço e fico um pouco mais longe daqui, continuo a avançar, mas sei que voltarei sempre aqui, sem pressa, precisamente um dia depois estarei novamente

 

nesta areia onde durmo todos os dias.

Basta ficar parado para viver todo o frémito da terra, ela gira e eu permaneço quieto, absorvendo as vibrações e as suas viagens.

 

(Vira-se para o público e começa a falar para cada uma das pessoas.)

 

 


2.

 

Lembro-me perfeitamente de uma família que nunca conheci, quer dizer, é mais uma daquelas memórias que não são minhas mas que quando querem,

 

entram no meu pensamento e eu deixo para ser outro.

Havia uma família,

há uma família que vive longe daqui mas que também aqui podia viver e que pratica maravilhosamente o ócio, sublimam esse prazer exótico de ficar a dormir durante dias.

Há de facto uma sublimação na forma como o fazem, entregam-se vorazmente a um sono que os mantém em silêncio, afastados uns dos outros.

Dormem durante dias.

Ouço que se encontram ocasionalmente dentro da própria casa,

uma espécie de hotel desabitado frequentado por hóspedes fortuitos. Mas é assim que vivem dentro de casa, em silêncio, quietos, tranquilos. Quando acontece um deles bater o recorde de sono de um outro familiar fazem uma festa

deliram

dão os parabéns

calam-se.

Apercebem-se que nada muda com uma celebração nem tampouco com uma conquista absurda: um recorde pessoal.

Voltam para a cama e então a casa fecha-se sobre o próprio silêncio.

Quando alguém bate à porta de um quarto, tranquilamente, claro, quem está a dormir limita-se a virar-se para a parede, mesmo que o recado seja a morte de alguém. Um morto não interfere mais na vida e sobretudo, não deve perturbar o sono daquele que reflete sobre a vida. Nada se deve intrometer nesta façanha.

A imutabilidade aparente deste sono só é visível para quem não o pratica, porque na verdade, dormindo desta forma, a mente fica cada vez menos aprisionada às normas da sociedade.

Nem quando o pai ameaçou casar-se com uma mulher mais nova isso foi o suficiente para os filhos agirem. Sabiam da ameaça que seria uma mulher em casa, regras sobre uma casa arrumada, trabalhar porque só assim um homem é digno. Um autêntico horror. Parece-me que os filhos se viraram contra a parede quando o tio lhes disse que o pai queria casar.

Viraram-se e dormiram ainda mais.

Seja como for, nunca fiz nada semelhante nem me atrevo a tão grande proeza,

prefiro vir para aqui e pensar com o mar

agitar-me ao seu ritmo

ah, como hoje está tão calmo, o mar.

 

3.

 

(Desenterra objetos: livros, canetas, chapéus, bule de chá, etc.)

 

Se fechar os olhos vejo como escrevi o meu primeiro romance

foi tal e qual em dias assim.

O ritual era sempre o mesmo – até porque sou dado a rituais e gosto de respeitá-los e repeti-los.

Trazia cinco folhas por dia, acreditava poder regressar a casa com todas as folhas escritas.

Cedo abandonei este ritual, não que tivesse deixado de acreditar nele, a verdade é que escrevia uma ou duas frases e isso bastava-me.

Comecei então a trazer apenas uma folha. A angústia era menor, uma folha em branco é mais suportável que cinco, é menos ambicioso e só isso já me deixava satisfeito.

Depois de uma folha grande para uma folha pequena e daí passei para uma folha ainda mais pequena. As duas frases que escrevia enchiam essa pequenina folha e eu então sentia que o meu dia tinha sido maravilhoso.

Demorei algum tempo a terminar o romance, mas fi-lo e publiquei-o. Foram sete anos de folhas minúsculas cheias de frases.

Cada frase era um grão de areia que demorava o seu tempo a transformar-se em palavra, digamos que a rocha é o conjunto de todas as palavras que existem e o grão a frase que se desprende da rocha. Por isso levo o tempo necessário, a frase tem de se soltar do mundo e vir parar às minhas folhas.

Os meus romances são grãos de areia nas minhas mãos.

Este é o meu tempo.

Vim para escrever e tive de tomar algumas decisões. Tinha propostas de vários editores, o meu primeiro romance tinha sido publicado em francês, inglês e árabe.

Escrevia desde os dez anos. Romances. Felizmente esses romances desapareceram ou fi-los desaparecer. Felizmente fi-los desaparecer.

Tinha diversos editores a procurar a minha obra e sem perceber porquê, a procura era maior que a oferta. Não podia escrever tanto, como uma máquina imparável. Máquina não podia ser. Disse a todos que sim, publicaria sem problemas, mas também sem prazos.

 

Seria tudo dentro do meu tempo, não escrevia por dinheiro, nunca o fiz. Por isso escrevi tão pouco, a minha motivação é a Humanidade dentro das pessoas e não o dinheiro.

Escrevia muito pouco, muito devagar, sem procurar ver o final do romance em cada frase,

queria encontrar apenas frases isoladas,

as minha memórias. As memórias que trouxe de Cairo.

Perguntaram-me um dia se eu ainda me sentia egípcio, vivendo longe como agora. Respondi que sim, claro, ser egípcio é uma condição e não apenas uma questão de fronteiras. O Egipto, trago-o dentro de mim, com as minhas memórias e experiências. Como amei na velha Cairo.

Fui procurado e visitado. Entrevistas? Só assim, à distância. (Para o gravador.)

Muitos jovens procuraram-me, quiseram conhecer o homem que escrevia os tais romances. Recebi toda a gente naquela casa. E nunca ninguém me disse que tinha gostado dos meus romances, isso é supérfluo, todos falavam sobre a obra sem elogiar. Afinal de contas, tinham realmente percebido a obra.

 

(Desliga o gravador e fica uns instantes com ele na mão. Fica a olhar o mar. Abre novamente a cadeira e pousa nela o gravador do jornalista.)

 

4.

 

Podia ficar aqui parado durante horas num exercício de reflexão,

mas não posso, não convosco a olhar para mim.

O ócio é uma coisa muito íntima e eu simplesmente não gosto de o fazer perante tantas pessoas. Isso é o lazer e eu não dedico todo o meu tempo a isso.

Gosto tanto disto aqui, esta areia suave que é o meu chão, estas pernas que são o meu transporte. É aqui que curo as minhas feridas quando preciso, na suavidade da areia e na aspereza do sal. Dum lado a dor do outro o abrigo.

Acho que ainda vou ficar um pouco convosco, não vou já para casa, o final de tarde está ótimo. Vou lá dentro trocar de roupa.

 

(Hesitação.)

 

Convidava-vos a entrar, mas a casa é pequena.

E também não posso dedicar todo o meu tempo ao lazer, tenho de terminar um pedido. (Vai a entrar, volta para trás e depois entra) Acabei de me lembrar de uma história que tenho a certeza será do vosso agrado. Não demoro.

 

(Entra finalmente dentro de casa. Vai falando com o público. Espreita pela porta para se certificar que o público ainda lá está. Faz barulho de quem está à procura de coisas.)

 

Ora, onde é que está o tabaco? Penso sempre que ainda tenho e afinal, maço vazio. Ah, neste ainda tenho dois! Ainda aí estão, que bom. (Volta para dentro) Falta só mais isto, beber um pouco de água (Bebe água) e já está.

Gostam de música? Toda a gente gosta de música. Já vos mostro uma que é uma memória de alguma coisa que não lembro exatamente o quê, sei que um dia comecei a ouvi-la e de repente senti-a minha, como se já a tivesse ouvido (Sai de casa com uma chávena de chá a ferver) numa outra ocasião ou se ainda, a primeira vez que a tivesse ouvido fosse num dia especial, como a primeira vez que fiz amor ou o primeiro cigarro que fumei.

Mais tarde cheguei à conclusão que nunca tinha ouvido aquela música, o que muito me intrigou.

A nossa memória é um beco sem saída quando chegamos a uma idade avançada. Não sou idoso, ainda, mas perdi algumas das memórias essenciais. E quando isso acontece, penso se de facto vivi algumas das aventuras que penso ter vivido. Quando penso muito no que vivi e não me lembro, assusto-me com a ideia de só me lembrar dos últimos trinta anos de vida.

Na verdade, sou um homem muito discreto, as minhas memórias começam com vigor a partir dos dez anos. Talvez tenha nascido com dez anos.

Consigo perceber esta ausência de memórias infantis,

os meus pais diziam a todos os filhos que a educação e formação seriam dentro de casa, ao mesmo tempo que impulsionavam o ócio caseiro.

Lembro-me de um silêncio profundo dentro de casa.

Mas falemos de música, da tal que vos falava e me fazia lembrar algo. A música é assim, vou partilhar convosco.

 

(Entra a música Khamriyyah e o ator começa a dançar. Depois a música pára e o ator fica a olhar para o público. Respira.)

 

Uma música sobre vinho, uma música da minha cultura.

É provável que não conheçam.

 

(Olha para o fundo onde é projetado um vídeo do ator a olhar em frente. Olha o público e olhar o ator em palco. O ator no vídeo olha lentamente para os lados e sai lentamente. O vídeo sai depois. Pausa. Volta às suas memórias.)

Foto: Patrícia Cividanes.

Ricardo Cabaça nasceu em Lisboa, em 1977. Licenciou-se em Estudos Portugueses. Autor e encenador, fundou com Daniela Rosado a companhia de teatro 33 Ânimos. Até ao momento escreveu e encenou na 33 Ânimos cerca de 10 trabalhos. Participou no Seminário Internacional de Dramaturgia 2015 (Obrador d’Estiu) em Barcelona, na Sala 

Beckett, com Simon Stephens. Foi o dramaturgo português convidado para a residência artística do Festival Chantiers d’Europe 2016, em Paris, no Théâtre de la Ville. Publicou O primeiro quarto na Bypass #2, Morte súbita na Revista Galega de Teatro #78 e Stop Motion para Eadweard nas Edições Húmus e Storni-Quiroga na Editora Licorne.  

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